Funciona um cinema sob uma ditadura? E se essa ditadura for teocrática? Para dar uma resposta correta, o melhor é se basear naquilo que vivemos e conhecemos. E neste caso, temos duas respostas. A primeira está relacionada com a ditadura militar, justamente quando o cinema nacional tinha se encontrado com o Cinema Novo e os filmes de Glauber Rocha, Carlos Diegues e Joaquim Pedro de Andrade. Poucos anos antes do Golpe, sob o clima da euforia das Reformas de Base de João Goulart, o cinema brasileiro tem “Vidas Secas”, de Nelson Pereira dos Santos, “Os Fuzi”s, de Ruy Guerra e chega ao auge com “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha, onde premonitoriamente já se tratava do messianismo.
Com a chegada do golpe militar, o cinema se torna introspectivo e entra na fossa e pessimismo com o “Desafio” de Paulo César Sarraceni e surge “Terra em Transe”, outro de Glauber Rocha, personificando as desventuras e desilusões da esquerda.
O cinema brasileiro tinha êxito e reconhecimento no exterior, embora não fosse muito apreciado pela classe média nacional. Os militares não proibiam, mas censuravam. Surgiu o Cinema Marginal com Rogério Sganzerla, Júlio Bressane e Ozualdo Candeias. Nesse clima, Glauber ganhou em Cannes, em 1969, com “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”. Mas o cinema caiu em qualidade com aversão patriota no filme “Independência ou Morte” de Carlos Coimbra e resvalou para a pornochanchada. Era o período em que o cinema para sobreviver tinha de conviver com os militares, se industrializar, trabalhar com os empresários; nem sempre dava certo tentar driblar os militares. Essa é a primeira resposta.
A segunda resposta é relacionada com os últimos quatro anos de Bolsonaro, nos quais se acabou com o Ministério da Cultura, se desvirtuou e esvaziou a Ancine, querendo que o cinema sem subvenções fosse obrigado a se vender, focasse suas produções em temas heróicos ou inspirados em narrativas bíblicas evangélicas, longe das questão de gênero, do feminismo e de sexo, contando baboseiras.
Felizmente não tivemos um segundo governo Bolsonaro, no qual provavelmente a cultura ficaria sob o controle religioso e o cinema teria de se adaptar às exigências de uma teocracia cristã evangélica. No momento, o cinema brasileiro está em convalescença, mas espera-se que logo reapareça com força nos festivais internacionais e nos cinemas nacionais.
Teocracia xiita e o cinema iraniano
O Brasil escapou por pouco de uma nova ditadura, na qual a cultura em geral, o ensino e cinema poderiam ficar sob o controle de uma teocracia evangélica. Vamos focar agora o cinema iraniano, cuja qualidade e sucesso nos festivais nos lembra os anos faustos do cinema brasileiro.
Com o fim da monarquia do Xá Reza Pahlevi, a revolta popular acabou ficando sob o controle religioso do aiatolá Khomeini, criando-se uma censura geral que inclui mesmo uma maneira rigorosa e puritana de se vestir para as mulheres. Em síntese, instaurou-se uma exigente teocracia. Isso complicava nas filmagens, mas as divergências dentro do regime khomeinista no que se referia à cultura e ao sucesso do cinema iraniano no Exterior permitiram uma certa ambivalência ou tolerância do governo com relação ao cinema, enquanto os cineastas procuravam – como faziam os cineastas brasileiros durante a ditadura militar – driblar as exigências baseadas na religião islâmica.
Isso incluía a fase da escritura ou roteiro do filme, as roupas das atrizes mesmo fora das filmagens e as palavras e entrevistas do cineasta ao apresentar seu filme nos festivais fora do Irã. Mas, sabendo se insinuar nos meandros das proibições e tocando de leve nos temas mais caros aos governantes, como o nacionalismo e a modernização da islamização, os cineastas iranianos conseguiram manter vivo o prolífico cinema dentro do país com grande sucesso no estrangeiro.
A tal ponto que o cinema iraniano vinha sendo o principal elemento de ligação do Irã com o Ocidente, com presença marcante nos festivais, capaz de garantir uma certa publicidade positiva do país. Os cineastas iranianos se tornaram mestres na arte de driblar a censura local e de jogar com a imaginação do público naquilo que é sugerido pelos filmes.
Entretanto, os líderes religiosos xiitas se radicalizaram. As recentes proibições e prisões de cineastas, agravadas com os assassinatos de manifestantes, entre eles o da jovem Jina Mahsa Amini, morta por ter colocado mal o véu, podem ter criado o clima de ruptura de uma parte da população, formada por muitas jovens, que não aceita mais continuar a se submeter ao regime teocrático iraniano, no poder há 43 anos.
O cinema independente iraniano está integrado no movimento Mulher, Vida e Liberdade, palavras de ordem repetidas nas manifestações que prenunciam uma revolução feminista contra um sistema milenar de dominação masculina. Alguns filmes feitos por cineastas independentes não mostram mais mulheres com o véu, porém não são exibidos dentro do Irã.
Acabou o tempo da coabitação de cineastas com o regime xiita teocrata, como foi o caso dos filmes de Abbas Kiarostami. Embora o cineasta Jafar Panahi tenha sido libertado e se refugiado na França, outros foram presos por alguns meses, como Mohammad Rasoulof, Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2020, e Mostafa Al-Ahmad, por ativismo anti-revolucionário.
O Festival Internacional de Cinema de Locarno mostrará o filme iraniano “Zona Crítica”, mas seu realizador, Ali Ahmadzadeh, foi proibido de sair do Irã e não poderá apresentar seu filme e nem conceder entrevistas. Desde o anúncio do seu filme ter sido selecionado para a competição internacional em Locarno, o cineasta vem sendo alvo de pressões pelo governo iraniano para retirar seu filme do festival. Para o cineasta, que foi convocado pelo Ministério de Segurança iraniano, o filme “é uma reflexão artística sobre a cólera e a raiva da jovem geração iraniana”. O filme foi feito sem a autorização das autoridades, antes das recentes manifestações contra o governo em Teerã.
O representante da Luxbox Paris e Sina Ataeian Dena, produtores do filme, receberam mensagens com ameaças exigindo a retirada do filme do Festival. Recusando esse tipo de pressão, Dena afirmou que divulgar essa situação é uma forma de proteger o cineasta e mostrar que o filme é a parte mais importante da luta contra a censura.
O filme de Ali Ahmadzadeh, “Zona Crítica”, mostra o personagem principal, Amir, sendo guiado pela voz de seu GPS e circulando pelos distritos do submundo de Teerã para confortar as almas perturbadas da noite. O realizador iraniano resume seu filme: “em vez de atores, trabalhei com pessoas reais. Na maioria das situações, tivemos que esconder a câmera ou encontrar truques complicados para contornar as proibições. Fazer este filme foi uma grande rebelião. Mostrá-lo no Festival de Locarno significa uma vitória ainda maior para nós”.
***
Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.