Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Berlim: estrutura social brasileira é racista

(Foto: Divulgação)

A última cena do filme Todos os mortos, exibido na competição internacional do Festival de Cinema de Berlim, mostra uma dolorosa realidade: muita coisa mudou, a escravatura terminou há mais de um século, mas a sociedade brasileira praticamente mantém a mesma estrutura social racista.

O momento de se mudar tudo, explicou um dos diretores do filme, Caetano Gotardo, passou sem ter se concretizado. Agora, a tendência vai na direção de uma estratificação, lembrando de certa forma a África do Sul. Com a agravante de uma polarização religiosa entre os evangélicos, consumindo um cristianismo modelado e exportado pelos americanos e as crenças trazidas da África pelos escravos.

Uma síntese do filme

Dez anos depois de terminada a escravatura, a família Soares, três mulheres, se sente perdida em São Paulo após a morte de sua última empregada doméstica. A família, que possuía plantações de café, está agora à beira da ruína e luta para se adaptar. Ao mesmo tempo, a família Nascimento, que trabalhava como escrava na fazenda Soares, agora se vê à deriva em uma sociedade em que não há lugar para negros recentemente libertados.

As personagens do filme são a senhora idosa acostumada a comandar, sua filha freira tentada por ideias blasfemas, a irmã pianista, cuja mente é habitada pelo passado sombrio de sua comunidade, e uma ex-escrava guiada pela força de vontade para ter uma vida melhor.

No encontro com a imprensa, os diretores do filmes explicaram sua criação, aproveitando para criticar a atual situação brasileira, com um governo de extrema-direita que ataca cinema e artistas, usando mesmo da censura.

Pode nos contar qual foi o ponto de partida para o filme?

Marco Dutra – Tudo começou em 2012, quando escrevi a história com a participação de Caetano. Algumas versões, que se mantiveram no filme, já se encontravam nesse primeiro texto, como as duas famílias e as profundas mudanças que iriam ocorrer nas suas vidas alguns anos depois da abolição da escravatura e da proclamação da República.

Queríamos retornar a essa época para mostrar as mudanças e para analisar se tinham ou não funcionado. Caetano me passou muitas boas sugestões e decidimos que seríamos co-diretores do filme. Já nos conhecíamos desde 1999 e decidimos que o filme seria nossa primeira realização conjunta.

Caetano Gotardo – Quando começamos a imaginar esse projeto, refletimos sobre a estrutura de nossa sociedade hoje. Era 2012 e, nesses oito anos, essa estrutura não mudou. Nessa época, o Brasil poderia ter tomado outro rumo e organizado a sociedade de maneira diferente. Surgiu a ocasião para isso, mas ela não foi utilizada. A estrutura da sociedade continuou a mesma.

Portanto, o que nos interessava era uma reflexão sobre a evolução da sociedade brasileira com a abolição dos escravos até os dias de hoje. Há, portanto, épocas que se sobrepõem no filme nos níveis visual, dramatúrgico e musical.

Essa sobreposição era nossa principal ideia. Quando se pensa na constituição da sociedade brasileira, é preciso se pensar na noção de raça, não necessariamente na negritude, mas igualmente na branquitude ou no fato de ser branco. Porque existe essa ideia recebida, de que ser branco é ser neutro.

Em geral, as pessoas pensam que os brancos são a classe média, mas isso é falso. Quando lemos uma história, um fator dominante é se o personagem é branco. Refletimos sobre esse “estatuto” e sobre as relações interraciais.

Houve muita pesquisa e, nesses anos, seguimos com atenção todos os debates sobre sexo, classe, raça, debate que estão presentes hoje, num nível ainda mais complicado. E todos que participaram a seguir do projeto puderam contribuir num clima de cooperação e colaboração.

Salloma Salomão – Acho que a maneira como esse filmes descreve a situação é uma nova visão ou maneira de perceber a sociedade brasileira. Uma espécie de reflexo ou espelho da sociedade brasileira, mas igualmente uma projeção dessa sociedade no mundo.

O cinema brasileiro sempre projetou duas imagens ou estereótipos da sociedade brasileira. A primeira é a de que vivemos numa sociedade harmoniosa, a segunda é a de que vivemos numa sociedade violenta. Na verdade, tanto uma como a outra são verdadeiras.

O Brasil é um país racista que conhece a coabitação entre as diversas raças. Tudo isso num universo social de grande pobreza e mesmo indigência. O filme descreve um momento crucial da sociedade brasileira de hoje, num momento de caminhos cruzados. Encontramos ainda hoje, na sociedade brasileira, elementos componentes da época da escravatura que fazem parte da vida dos brasileiros. Essa intimidade não se vê nas ruas. Quando um pesquisador entra na casa de aristocratas, constata essa intimidade.

Artistas são alvo de ataques

Respondendo a uma pergunta sobre a situação atual do cinema brasileiro, Caetano Gotardo fez um resumo importante: “Existe hoje, no Brasil, uma tentativa diária para se conter a força expressiva da arte. Os artistas estão sendo alvos de ataques diretos, de notícias falsas, perseguições pessoais ou perseguições a suas obras e circulação de mentiras”.

“É muito importante haver aqui, em Berlim, todos esses filmes brasileiros, é muito importante o cinema brasileiro estar no cenário internacional e inclusive no cenário nacional, porque isso nos dá uma sensação da força que tem a arte brasileira e nos dá energia para lutar contra esses ataques cotidianos, inclusive com acenos à censura em certos temas e censura contra certos artistas. Tudo isso estamos vivendo hoje e nossa presença, aqui, tem uma força simbólica muito grande, de resistência e de luta, para continuarmos vivendo do nosso trabalho artístico”, completou.

Houve uma vibrante declaração da produtora Sara Silveira em defesa da arte brasileira: “Hoje, temos um problema enorme com um presidente de extrema-direita que ataca nossa cultura, nossa educação e nosso audiovisual. A indústria brasileira de cinema tem 500 mil pessoas que com ela trabalhavam e trabalham direta ou indiretamente”.

E prosseguiu: “Estamos sendo totalmente tolhidos, freados por um governo que não entende, talvez por lhe faltar inteligência. Já que são tão neoliberais, por que não entendem que proporcionamos empregos e ideias, diversidades e sobretudo resistência? Enquanto eu existir como mulher, eles vão ter de ouvir e ver os meus filmes. Vai ser difícil nos calar, visto a força que a gente tem. Eu não preciso de armas. Eu preciso de força, amor, coragem e momentos heróicos para suportar o que estamos vivendo, nós, de todas as raças, de todos os gêneros, os artistas que estão aqui gritando por liberdade, democracia e contra a censura. Resistência”.

Johnny Depp, ator militante contra poluição

Em Berlim, o ator Johnny Depp surge como um combatente político contra a poluição industrial que afetou gravemente uma população de pescadores no Japão – mesmo porque, é o ator e produtor do filme Minamata, nome da pequena cidade onde a poluição por mercúrio causou mortes e afetou crianças entre 1951 e 1970.

No filme, Depp vive o lendário fotógrafo da antiga revista Life, William Eugene Smith, conhecido por suas fotos durante a Segunda Guerra Mundial, pelas imagens da clínica do doutor Schweitzer, na África Equatorial, e pelas fotos feitas na pequena cidade japonesa de Minamata, cuja população estava sendo envenenada pela poluição causada por uma indústria química local.

Inicialmente, Eugene Smith não queria ir até Minamata, como lhe pedia o editor da revista Life. Mas acabou sendo convencido e suas fotos serviram para revelar ao mundo os distúrbios neurológicos causados na população de pescadores japoneses pelos resíduos químicos não tratados de mercúrio lançados por uma indústria nas águas da Baía de Minamata, com cumplicidade das autoridades locais, e que acabaram poluindo os peixes, alimentação principal dos habitantes da cidade.

A poluição tinha começado em 1956, mas foi acobertada pelos dirigentes da cidade até 1961, quando as fotos de Eugene Smith mostraram ao mundo os males causados nas crianças e na população.

Em Minamata, Johnny Depp reencontra o engajamento político como ator e como produtor de um filme de denúncia contando uma história real.

“Senti imediatamente um estranho fascínio pela experiência de Eugene Smith, por seu compromisso com o trabalho e pelo sacrifício que ele fez”, contou Johnny Depp, também produtor do filme, no contato com a imprensa.

No filme, ele encarna toda a força das imagens, mesmo porque tão logo leu o roteiro com a história e o pesadelo vivido pelos habitantes de Minamata Johnny Depp sentiu necessidade de divulgar os fatos. “Nunca imaginei que algo tão horrível pudesse acontecer. Como leitor, senti que essa história tinha que ser contada. Acho ser necessário usar o poder da mídia e do cinema para abrir os olhos das pessoas para algo que aconteceu. Temos a sorte de poder honrar a memória dessas pessoas mostrando o que elas viveram. Poder usar o cinema para enviar uma mensagem é, para mim, um sonho”, disse.

Convertido num ativista contra a poluição, Depp acentuou também a importância da militância política e do poder coletivo, pois sozinhos somos muito pequenos para reagir: “Na vida, todos nós temos que enfrentar problemas insuperáveis, como doenças e crises. Mas, no I Ching, existe um belo símbolo a respeito. Você enfrenta essas enormes dificuldades, mas não será capaz de vencê-las lutando sozinho ou gritando. O poder dos pequenos é a ideia de que juntos reconhecemos o problema para combatê-lo pouco a pouco.”

Jeremy Irons, nem sexista e nem homofóbico…

A hora é de os homens sexistas ou homofóbicos se desculparem ou negarem ter dito ou escrito alguma coisa nesse sentido. Só falta mesmo o presidente Bolsonaro aproveitar essa onda para se desculpar.

Jeremy Irons, ator e presidente do júri da principal competição do Festival Internacional de Cinema de Berlim, aproveitou a entrevista coletiva com a imprensa para corrigir a impressão deixada no passado, e que voltou a circular, de que seria sexista e homofóbico.

Para evitar que o rumor negativo pudesse comprometer o festival, também conhecido como Berlinale, Jeremy Irons fez uma declaração, transcrita e incluída no site oficial do evento:

“Antes de começarmos a trabalhar seriamente, eu gostaria – não como presidente do júri, mas em nível pessoal – de abordar vários comentários que eu supostamente fiz no passado e que ressurgiram em algumas seções da imprensa nas últimas semanas. Eu gostaria de não ter que me demorar com isso, mas não quero que isso continue como uma distração para a Berlinale.

Meus comentários anteriores – já refutados e desculpados – referem-se a três assuntos. Três assuntos que estão muito em nossa mente hoje em dia, e com razão: abuso sexual, casamento entre pessoas do mesmo sexo e aborto.

Permitam-me esclarecer todas as minhas opiniões sobre esses assuntos específicos de uma vez por todas.

Em primeiro lugar, apoio de todo o coração o movimento global para tratar da desigualdade dos direitos das mulheres e protegê-las de assédio abusivo, prejudicial e desrespeitoso, tanto em casa quanto no local de trabalho.

Em segundo lugar, aplaudo a legislação do casamento entre pessoas do mesmo sexo onde quer que tenha sido alcançada e espero que essa legislação esclarecida continue a se espalhar por mais e mais sociedades.

Terceiro, apoio de todo o coração o direito das mulheres de fazer um aborto, se assim decidirem.

Esses três direitos humanos são, acredito, etapas essenciais para uma sociedade civilizada e humana, pela qual todos devemos continuar lutando. Há muitas partes do mundo onde esses direitos ainda não existem, onde tais modos de vida levam à prisão e até à morte.

Espero que alguns dos filmes que assistirmos abordem esses problemas, entre muitos outros que enfrentamos em nosso mundo, e espero assistir a filmes da Berlinale deste ano que nos levem a questionar atitudes, preconceitos e percepções da vida em todo o mundo, como nós sabemos.

Espero que isso tenha colocado meus comentários anteriores na cama. Agradeço por terem vindo esta manhã e, agora, vamos continuar com dez dias de investigação e celebração.”

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. É criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.