Robert Capa e Luciano Carneiro trilharam caminhos relativamente paralelos, guardadas a diversidade geopolítica. Ambos, romperam suas fronteiras e viraram cidadãos do mundo. O primeiro inspirou o outro e ambos morreram jovens, no ápice da fama. Luciano Carneiro foi o primeiro fotógrafo de guerra do Brasil como enviado especial da revista ‘O Cruzeiro’ para a guerra da Coreia, em 1951 Robert Capa foi o grande inspirador do fotógrafo Luciano Carneiro.
Em muitos momentos Luciano refez os caminhos de Capa. Por exemplo, a cobertura de uma guerra. Capa inventou a cobertura do jornalismo de guerra. Foi o pioneiro e o mais ousado. Pagou com a própria vida em acidente frugal, sem combate. Do mesmo modo Luciano. Piloto, morreu em um acidente aéreo às vésperas do Natal de 1959, como passageiro, em um voo de Brasília ao Rio de Janeiro, no retorno de uma pauta também frugal, lúdica.
A relação subjetiva que Luciano estabeleceu com Capa é um dos capítulos mais instigantes da biografia que estou escrevendo sobre o fotógrafo de ‘O Cruzeiro’. Há um enorme atavismo, uma intertextualidade ou, sem firulas acadêmicas, uma imitação de Luciano como homenagem e como superação — freudianamente falando — deste em relação a Capa. O que permanece é a admiração e o respeito.
Luciano construiu uma carreira de pouco mais de dez anos no momento em que nascia o fotojornalismo no Brasil, sob o guarda chuva dos Diários Associados e dentre dele, da revista ‘O Cruzeiro’ — essa arrojada estratégia de integração nacional levada a efeito pelo visionário e destemido Assis Chateaubriand.
No final dos anos 1940, Luciano Carneiro era repórter e fotógrafo do jornal Correio do Ceará, em Fortaleza, veículo fundado em 1915 mas adquirido por Chateaubriand em 1937 passando a fazer parte da poderosa rede nacional Diários Associados.
Inquieto e fascinado pelo jornalismo, o jovem de pouco mais de 1,70m de altura largou faculdade de Direito do Ceará para se dedicar totalmente ao jornalismo e, perifericamente, aos seus esportes preferidos, a aviação e o xadrez. O amor pela aviação foi potencializado a partir da amizade com Hélio Guedes, empresário e também presidente do Aeroclube do Ceará. O amor pelo xadrez cresceu na medida em que cobria os campeonatos desses esporte nas galerias do Náutico Atlético Cearense. O batismo de fogo de Luciano na aviação foi um voo de Fortaleza a Parnaíba e daí a Teresina, quando, ao ousar em quebrar seu “recorde” de altitude, se perdeu; Ainda bem que estavam à bordo o próprio Guedes e o instrutor de Luciano, seu xará Luciano Magalhães.
Luciano caiu nas graças do “desassombrado” — na expressão de Flávio Damm — Chateaubriand quando ganhou um concurso instituído pela revista ‘O Cruzeiro’ para premiar os melhores pilotos do Brasil. Saiu sozinho de Fortaleza rumo ao Rio de Janeiro pilotando um pequeno avião, no início dos anos 1940 quando, finalmente se mudou para o Rio de Janeiro.
Na edição de 2 de julho de 1937, a revista ‘Life’ publicou a foto que marcaria o início da carreira de Robert Capa como repórter de guerra, ‘Falling Soldier’ [Soldado Caindo]. A foto, aberta no alto da página 19, ilustra o editorial ‘Death In Spain: The Civil War has Taken 500,00 Lives In One Year’ — [“Morte na Espanha: A Guerra Civil levou 500.000 vidas em um ano”].
Seguiam-se, até a página 25, muitas fotos da guerra civil espanhola com legendas escritas por Ernest Hemingway. Sob a foto do “Soldado caindo”, lê-se: “A câmera de Robert Capa pega um soldado espanhol no momento em que ele é derrubado por uma bala na cabeça em frente a Córdoba” A famosa foto foi feita no 5 de setembro de 1936 em Cerro Muriano, bairro espanhol com parte do seu território no município de Córdoba e outra parte no município de Obejo.
Publicada primeiramente na revista semanal francesa ‘Vu’ de 23 de setembro de 1936 somente no ano seguinte saiu na influente ‘Life’ ilustrando o texto de Hemingway sobre a fratricida guerra (1936 a 1939). Anos mais tarde instalou-se uma polêmica ruidosa sobre a veracidade daquela que é a mais celebrada foto de guerra. Uma entre outras polêmicas que se seguiriam.
A segunda guerra mundial ampliava a notoriedade e o arrojo de Capa colocando-o no front juntamente com os soldados do 16º Regimento de Infantaria das Forças Armadas americanas no decisivo desembarque na Easy Red, em Omaha Beach — nomes e códigos criados pelos americanos —, no norte da França, região da Normandia.
A ruidosa ação produziu fotos “ligeiramente fora de foco”. A cobertura de Capa saiu na edição de 19 de junho de 1944 de ‘Life’, cuja capa era um retrato em plano médio do general Dwight D. Eisenhower sentado olhando para a câmera, mãos sobre uma mesa de trabalho, bandeira nacional ao fundo, com uma caneta na mão simulando estar escrevendo — um clássico clichê.
O artigo “Beachheads of Normandy” — algo como a ocupação estratégica da Normandia ou, simplesmente, “a invasão da Normandia” — era ilustrado com o material de Robert Capa da página 25 à página 29 daquela edição. Das 108 fotos feitas por Capa somente 11 sobreviveram ao acidente que destruiu o material. Dessas 11 fotos, ‘Life’ publicou 10.
Quando morreu, na Indochina, Capa já era um dos sócios da Magnum — a pioneira agência cooperativa de fotógrafos que ele ajudou a fundar na ressaca do pós guerra — mas estava a serviço da ‘Life’, de onde formalmente se desligou em 1947 para iniciar a cooperativa. “Ele era um grande amigo e um grande e muito bravo fotógrafo”, disse Ernest Hemingway à revista ‘Life’. A capa da edição exibia uma ilustração colorida de um prosaico alce em primeiro plano, em um campo aberto, tendo ao fundo mais quatro similares, em atos diversos. Era a chamada a série “O mundo em que vivemos”, iniciada há 10 edições.Robert Capa certamente deveria estar no lugar daquela ilustração mas nunca se sabe as motivações de um editor e de um publisher.
As revistas são muito menos perecíveis que os jornais principalmente devido a qualidade do papel e do acabamento mas também pelo conteúdo na maioria das vezes mais conjuntural se contrapondo à factualidade que predomina nos jornais. A vida útil das revistas e a quantidade média de leitores por exemplar é potencialmente muito maior que a dos jornais.
‘Life’ influenciou definitivamente o fotojornalismo no mundo e, em especial, ‘O Cruzeiro’. A hipótese de que ‘Life’ fundou o fotojornalismo é consistente.
Foi o Henry Luce, quando comprou a revista em 1936, quem escreveu a hoje antológica “missão”, dando as diretrizes do método profissional e seus altivos objetivos: “Ver a vida; Para ver o mundo; para testemunhar grandes eventos… para ver coisas estranhas… para ver e se surpreender”.
A missão de ‘Life” se espraiou nos trópicos.
“O Luciano era mais revolucionário, era mais questionador, estabelecia um diálogo crítico com [o chefe de redação da ‘O Cruzeiro’] Leão Gondim”, relembra Flávio Damm. Ele conta que Luciano defendia um formato mais retangular da fotografia no layout da revista na perspectiva dos 45 graus da visão humana.
Contemporâneos de Luciano Carneiro em ‘O Cruzeiro’, como Flávio Damm, todos eles lembram que a revista proporcionava condições de trabalho excepcionais, sem restrições de ordem financeira tanto para aquisição de novas tecnologias gráficas e fotográficas quanto para viagens em grandes coberturas e reportagens especiais. “Nós tínhamos liberdade para fazer qualquer coisa”, lembra Damm. “O laboratório era impecável, os fotógrafos não tinham limitação para fotografar”, lembra Luiz Carlos Barreto que começou como repórter na revista mensal ‘A Cigarra’, também dos Diários Associados, e, em 1950 passou a integrar a equipe de ‘O Cruzeiro’ na cobertura da Copa do Mundo. Cobriu também as copas de 1954, 1958 e 1962.
Quando voltaram da cobertura da Copa de 1958 na Suécia — onde o Brasil ganhou seu primeiro título mundial no futebol —, Luiz Carlos Barreto e Luciano Carneiro, estavam inebriados com o sucesso da agência Magnum, uma cooperativa internacional de fotógrafos fundada um ano antes por quatro fotógrafos: Robert Capa, Henri Cartier-Bresson, George Rodger e David “Chim” Seymour todos ainda demasiado marcados pela brutalidade da guerra recém finda.
Os fotógrafos da Magnum elevados ao status de ícones principalmente para seus colegas mundo afora.
Exemplares da ‘Life’ passeavam pelas mãos da redação de ‘O Cruzeiro’, idem da sua similar francesa, a revista ‘Paris Match’. Era uma inspiração e também uma projeção constantes. Muitas pautas surgiam a partir dali e, em alguns casos, até mesmo versões locais de temas publicados.
Um outro fotógrafo de guerra, William Eugene Smith, cumpriu papel crucial nessa atividade cobrindo embates sangrentos em meio ao fogo cruzado. Vítima de disparos em confronto de guerra, Smith passou dois anos se submetendo a cirurgias para tentar recompor parte da caixa óssea facial.
“Se eles fizeram nós também poderíamos fazer”, conta Flávio Damm traduzindo o espectro que irradiou um “aventureirismo” sobre a redação de ‘O Cruzeiro’.
— A partir dessas referências criou-se um ‘aventureirismo”. Íamos para os lugares de peito aberto… não tínhamos limitação , não tínhamos medo.
Mostro, em capítulo específico da biografia de Luciano Carneiro, que de todos os “aventureiros” ele foi infinitamente o mais ousado. Como primeiro fotógrafo de guerra do jornalismo brasileiro pulou de paraquedas na Operação Tomahawk junto com as tropas americanas no chão arrasado da guerra da Coreia. É fato que Joel Silveira e Rubem Braga reportaram batalhas da segunda guerra na Itália junto às tropas da Força Expedicionária Brasileira — FEB. Mas o diferencial de Luciano Carneiro na guerra da Coreia é especialmente a fotografia a despeito de ele escrever seus próprios textos. Ele estava lá quando o fato aconteceu.
Vejamos este cronograma bem resumido de algumas coberturas de Luciano Carneiro:
1951: Cobriu a sanguinária guerra da Coreia (1950 e 1953)
1951: Formosa, China
1953: Cobriu a coroação da rainha Elizabeth II
1953: Reportagem em Canudos resgatando a memória Antônio Conselheiro
1954: Em abril, entrevista e fotografa na cidade do Cairo, Muhammad Naguib, presidente do Egito
1954: Cobre a Copa do Mundo de Futebol ao lado de Indalécio Wanderley e Luiz Carlos Barreto em equipe chefiada por David Nasser.
1954: Cobriu Chatô e o MASP itinerante, em Milão.
1954: Cobre o VII Festival Internacional do Filme, em Karlovy Vary, cidade balneária na Checoslováquia.
1955: Em abril, ‘O Cruzeiro’ publica reportagens de Luciano Carneiro na África com Albert Schweitzer que construiu uma vila para atender leprosos na África Equatorial Francesa, hoje Gabão.
1955: Correspondente de ‘O Cruzeiro’ na Europa, cobre o Festival de Cannes com atrizes como Sophia Loren, Grace Kelly, Gina Lollobrigida, Doris Day, Brigitte Bardot, Esther Williams, Zsa Zsa Gabor, Gene Kelly. Uma belíssima foto de Dominique Wilms ocupou página inteira, sangrada, na revista ‘O Cruzeiro’.
1955: Paris, cobre a exposição ‘Archives de France’
1956: Mais uma de suas reportagens com jangadeiros no Ceará com fotos raras, coloridas.
1959: Cobriu a expulsão de Fulgêncio Batista pela revolução cubana com Fidel Castro com fotos exclusivas e entrevista com Fulgêncio e com Fidel Castro no calor do primeiro dia da tomada de Havana. São fotos dramáticas.
Luciano cobriu a guerra da Coreia com a 25ª. Divisão de Infantaria Americana. Os voos saiam de uma base de apoio no Japão. “Luciano Carneiro, o jovem repórter cearense de ‘O Cruzeiro’, único correspondente de guerra sul-americano na Coreia, consegue um feito sensacional saltando de paraquedas atrás das linhas comunistas”, exaltou ‘O Cruzeiro’ anunciando a chegada de Luciano Carneiro à Coreia.
Preparando-se para a nova empreitada, o piloto Luciano tomou aulas de paraquedismo com o campeão sul americano Charles Astor, pioneiro do paraquedismo e da ginástica acrobática no Brasil e, logo, deu seu primeiro salto, sozinho. No segundo salto, a “maquininha Leica de perdigueiro” estava em punho “fixando cenas espetaculares em pleno espaço”.
Em fevereiro, Luciano seguiu para o Japão onde cumpriu as etapas de exigências para, finalmente, obter o credenciamento para ir ao front.
Na cobertura seguinte, na União Soviética, refez, de certo modo, sozinho, o roteiro escrito por John Steinbeck (texto) e Robert Capa (foto) mostrando o dia a dia no bloco durante a guerra fria e publicado no livro ‘A Russian Journal’ (1948).
Minha pesquisa mostra a influência de Capa em Luciano e a influência da revista ‘Life’ em ‘O Cruzeiro’. Num dado momentos, o desenho desta se apropria das dimensões da ‘Life’, em tipografia em enquadramento das imagens.
Robert Capa, o fotógrafo que sobreviveu a muitos tsunamis, morreu “afogado” em copo d’água, ao pisar em uma mina terrestre na Indochina, em 25 de maio de 1954. Suas pernas ficaram dilaceradas, as mãos firmes seguravam a câmera. Estava com 41 anos.
José Luciano Mota Carneiro, um repórter ‘globetrotter’, morreu em um acidente, a colisão de caças da aeronáutica que invadiram o espaço aéreo de um avião de passageiros Viscount da Vasp que o trazia de volta de uma cobertura em Brasília juntamente com outros 42 passageiros no dia 22 de dezembro de 1959. Estava com 33 anos.
Não chegou a ver seu segundo filho que nasceu em março de 1960 para fazer companhia a Tatiana, a primogênita do casal Luciano e Maria da Glória Stroebel Carneiro.
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Luis Sérgio Santos é professor do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará.
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NOTAS
1. FONTE: ‘Life’, página 25, in: “So that a brave man’s story can be told” editorial, 7 de junho de 1954, volume 36, número 23.
2. FONTE: “Fotógrafos falam sobre a revista ‘O Cruzeiro’”, vídeo produzido em 2013 pelo Instituto Moreira Salles com depoimentos de Luiz Carlos Barreto, Flávio Damm, Walter Firmo e Evandro Teixeira sobre a influência exercida pela geração de fotojornalistas da revista ‘O Cruzeiro’. Está disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=UJqtG3s2V7U>