Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A seleção branca da Argentina

(Foto: FIFA)

Na final do Mundial de Futebol no Qatar, mesmo quem estava muito empolgado com o melhor de todos os jogos notou: de um lado uma equipe europeia metade branca metade negra e do outro uma equipe sul-americana branca. E nos estádios, entre os 40 mil torcedores argentinos, a televisão não mostrava negros. Seria o mundo ao inverso? Por isso, pouco antes da prorrogação e da cobrança dos pênaltis, enviei rapidamente por whatsapp a alguns colegas e amigos a pergunta – por que a Argentina não tem jogadores negros?

E pouco antes da conquista do tricampeonato mundial pela Argentina e a sagração de Messi como melhor futebolista do mundo, recebi algumas respostas:

– A Argentina deve ser ligeiramente racista;

– Porque na Argentina houve poucos escravos africanos… eles preferiram os índios;

– Porque há poucos negros na Argentina;

– Porque os argentinos usaram os negros como bucha de canhão nas suas guerras internas.

Terminado o jogo, decidi fazer algumas pesquisas e me senti confortado ao saber ter havido muita gente intrigada com isso, inclusive na mídia africana. Mas antes de prosseguir, é importante assinalar não haver nessa indagação sobre a ausência de negritude na seleção celeste, azul e branca, qualquer tentativa de desmerecer sua vitória. Na verdade, seleção branca ou não, não prova nada.

O Brasil sempre contou com craques afrodescendentes, como Pelé, considerado o melhor do mundo, porém isso não significou melhores condições e nem leis sociais para a população negra brasileira. O importante é ter equipes de deputados e senadores com participação de afro descentes, conquista recente porém ainda minoritária.

Mas retornando à questão da negritude no Mundial, percebi ter merecido atentos comentários. Mostrando uma visão geral da questão, o primeiro destaque seria para o comentário publicado no blog Náufrago da Utopia, por Dalton Rosado, sob o título A maestria africana no futebol, no qual se acentua não ter sido só o quarto lugar mundial conquistado pelos africanos com o Marrocos. Na verdade, destaca Dalton, o segundo maior futebolista do mundo, Kylian Mbappé, é africano de origem, filho de emigrantes da República dos Camarões na França.

Dalton destaca ainda que a seleção celta dos belgas ou Diabos Vermelhos tinha nove jogadores negros. A Alemanha, que no passado nazista perseguia os não arianos, tinha no Qatar sete futebolistas negros. O mesmo ocorreu na seleção inglesa com dois afrodescentes na equipe principal. A Espanha, quatro jogadores negros, e Portugal, seis, entre eles o brasileiro Pepe, alagoano de origem índia e africana. Nessa relação dos grandes futebolistas negros não se pode esquecer o maior de todos eles, o brasileiro Pelé, descendente de escravos importados da África pelo Brasil, como são todos os negros e mestiços componentes de mais da metade da população brasileira.

Meu segundo destaque é para o texto do colega Rafael Barifouse, também antes da final do Mundial, publicado pela BBC News Brasil, com bastante audiência online. O seu lead sintetiza bem a preocupação do artigo: “De um lado um país europeus que tem pelo menos metade de jogadores negros no time. Do outro, um sul-americano que não tem nenhum”.

E para não dar a impressão de estar sozinho, Rafael, cita outros jornais que também perguntaram por que a seleção argentina é tão branca: o Washington Post dos EUA, o inglês The Guardian, a rede Al Jazeera do Qatar, e o portal UOl no Brasil.

Depois de citar ter sido criado o mito de uma Argentina branca de descendentes europeus, Rafael lembra uma frase do presidente Alberto Fernández, no ano passado, da qual teve de se retratar, a de que “os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros das selvas, mas nós argentinos chegamos nos navios”.

Esse mito no qual creem os argentinos, segundo o sociólogo Guillermo Orsi, perdurou até recentemente, mesmo porque só no recente Censo de 2010, se perguntou ao povo quem era afrodescendente. As respostas mostraram haver atualmente 150 mil afrodescendentes na Argentina ou 0,36% da população, embora ativistas digam ser maior esse número, mesmo pois um teste piloto feito anteriormente mostrava haver 2 milhões de afrodescendentes na Argentina.

Segundo o ativista e advogado Alí Delgado, citado pela BBC, muitos não sabem e outros não querem saber, no caso de terem embranquecido, para não sofrerem os estigmas associados à negritude. “O negro é com frequência considerado um estrangeiro, não se concebe um negro argentino. Não há negros nas universidades nem entre os professores, nem entre os políticos, pelos menos nos postos mais importantes, nem nos âmbitos empresariais ou da Justiça”.

Mas, então, onde estão os negros, se há trezentos anos eram um terço da população argentina? Uma explicação é a de terem morrido nas guerras nacionais argentinas, inclusive com o Brasil, mandados para a linha de frente, segundo a BBC, que poderíamos interpretar como “usados como bucha de canhão”. Outra explicação seria a de grande mortalidade negra por doenças, epidemias, como a da febre amarela, por serem pobres, declinando a população depois do tráfico de escravos.

Essas hipóteses já teriam sido refutadas, prossegue Rafael da BBC, citando um artigo no Washington Post, da professora de História Latina na Universidade do Texas nos EUA,  Erika Edwards, “houve um apagamento dos negros na sociedade, quando a Argentina decidiu nos últimos séculos atrair imigrantes europeus como parte de um projeto de nação mais moderna… e branca”.

Segundo Alí Delgado, um raro negro argentino, “houve um genocídio discursivo” misturando-se negros com índios e não se considerando afrodescendente quem por miscigenação não tem mais pele escura e nem cabelo crespo.

E o que diz a mídia negra?

Para concluir, uma rápida vista da mídia negra. O site de informação da África francófona AFRIKI dedicou um grande espaço sobre a questão, destacando que a mestiçagem ocorrida em diversas gerações teve um papel importante no branqueamento dos antigos escravos. Mulheres de origem negra procuraram ser consideradas ameríndias para serem favorecidas por leis em favor de seus filhos mestiços.

Porém, o fator mais importante teria sido a decisão de antigos presidentes argentinos em favor de emigrantes brancos logo depois do fim da escravidão. Para eles, a modernidade, o progresso e o futuro do país estavam na aceitação de europeus e em europeizar o país, rejeitando também a cultura africana trazida pelos escravos. O sul do Brasil, o Uruguai e Cuba fizeram o mesmo, mas a Argentina, diz o jornalista Yaya Kanté entrevistando o jurista Mamady Kourouma, foi o único a criar a imagem de país branco. Assim, o presidente argentino Justo José de Urquiza seguiu as idéias do filósofo e diplomata Juan Bautista Alberdi e incluiu na primeira Constituição do país a emenda 25, pela qual “o governo federal favorecerá a imigração européia”.

Em consequência dessa preferência o ex-presidente argentino Sarmiento dizia, no fim do século XIX, “dentro de 20 anos, será preciso ir ao Brasil para se ver negros”. Quatro milhões de imigrantes europeus chegaram à Argentina entre 1860 e 1914, enquanto os mestiços afrodescendentes iam se integrando aos brancos.

Assim, Kouroma, depois de relacionar todos os tipos de mestiços e as atuais migrações de Cabo Verde e mesmo do Brasil à Argentina, conclui que a seleção argentina não é tão branca como parece. Foi o caso do “morocho” ou mestiço Diego Maradona e de outros futebolistas argentinos, num país mais diversificado do que tentaram criar certos políticos com o objetivo de mostrar uma nação moderna.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.