Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O jornalismo esportivo e as bets – uma aposta arriscada

O pesquisador debate as implicações éticas existentes na relação entre o jornalismo esportivo e sites de apostas esportivas. (Foto: Freepik)

Elas são onipresentes no mundo do futebol. Estão nas placas a beira do campo, nas camisetas dos clubes, nos microfones das transmissões online. Pipocam na tela da televisão, dominam os comerciais durante os intervalos. Investem cifras milionárias em patrocínios e comerciais. Mobilizam milhares de influenciadores. Sua presença no esporte mais popular do mundo, só é proporcional ao volume de dinheiro que fazem circular. As casas de apostas online tornaram-se importantes financiadoras do futebol e de tudo o que gira em torno dele. E isso inclui, de forma preocupante, o jornalismo.

Levantamento da Folha mostra que as chamadas bets patrocinam 19 dos 20 clubes da Série A do Campeonato Brasileiro. A estimativa do BNL Data é de que as casas faturem neste ano algo em torno de R$ 12 bilhões com apostadores brasileiros. A montanha de dinheiro, no entanto, é potencialmente maior. O Instituto Jogo Legal estimou que o volume usado para recebimento de apostas e pagamento de prêmios está em cerca de R$ 100 bilhões. É muita grana.

São mais de 500 casas de apostas em funcionamento no Brasil. As bets esportivas obedecem a uma lei sancionada em dezembro de 2018, que nunca chegou a entrar formalmente em vigor porque não foi regulamentada. Em tese, a regulamentação poderia ocorrer por meio de decreto do presidente da República ou de portaria do Ministério da Fazenda, o que não ocorreu no governo de Jair Bolsonaro. Enquanto isso, o volume de apostas explodia no país.

Como dizem os mais jovens, surpreendeu um total de zero pessoas quando os primeiros escândalos de manipulação de apostas e resultados começaram a ser descobertos no Brasil. Com tantas casas, possibilidades de apostas e com tanto envolvimento de clubes e atletas com as bets, não foi uma surpresa quando atletas de diferentes clubes brasileiros se envolveram na manipulação de situações de jogo para beneficiar quadrilhas de exploradores das apostas. É importante ressaltar que, nos casos investigados, as casas são vítimas das fraudes.

E o jornalismo?

Não é exagero dizer que, hoje, a maior parte da produção jornalística sobre esporte no Brasil é financiada por sites de apostas esportivas. O governo federal estima que os investimentos em publicidade dessas casas superem os R$ 3 bilhões por ano. São mesas redondas, jornadas esportivas, programas de rádio e televisão, sites de notícias patrocinados, por exemplo.

O alcance dos patrocínios das apostas não se restringe ao jornalismo tradicional. Em explosão, o jornalismo identificado, aquele praticado por profissionais que assumem sua torcida por determinado clube e que se utilizam de plataformas de redes sociais digitais para divulgar informações e opiniões sobre seu time, é largamente financiado por casas de apostas. Além deles, há um ecossistema de influenciadores e personalidades patrocinadas por sites especializados em palpites esportivos. Um emaranhado de profissionais que se relacionam diretamente com o esporte e que têm nas bets uma fonte de financiamento.

A complexa relação do jornalismo e seus anunciantes é um tema de discussões recorrente. Ainda no início do século XX, Edward Ross já apontava as chamadas “vacas sagradas do jornalismo”, um conjunto de temas que não entravam na seleção de notícias em função dos interesses de quem anuncia. No caso das casas de apostas, no entanto, o problema parece ser mais profundo.

Veremos essas pautas na imprensa esportiva?

A descoberta de esquemas de manipulação de apostas – que coloca em risco a credibilidade tanto do futebol quanto das casas – foi amplamente noticiada pela imprensa. Por outro lado, parece distante imaginar o jornalismo investigativo descobrindo esses casos. Até aqui, o jornalismo tem se limitado a informar as descobertas do Ministério Público. Quanto outros esquemas ainda virão? O jornalismo investigativo trará alguma contribuição?

Passa, ainda, ao largo das discussões do jornalismo esportivo o sério problema do vício em apostas, chamado de Ludopatia pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Aqui e ali, história de apostadores que perderam o pouco que tinham aparecem em redes sociais. O jornalismo esportivo, financiado por casas de apostas, está pronto para falar desse fenômeno?

Ágil para descobrir escalações, bastidores, negociações, brigas de vestiário, o jornalismo esportivo parece mais preocupado com o circo do futebol e menos com aspectos fundamentais desse esporte. Fenômeno cultural e que mobiliza multidões, o futebol vai muito além do campo. É uma atividade econômica gigantesca, que mexe com a vida das pessoas.

Proposta de legislação ainda é superficial

O governo Lula parece bastante preocupado com uma das questões relacionadas aos sites de apostas: os impostos. Projeto apresentado no final de julho regulamenta o funcionamento das bets. As casas de apostas eletrônicas pagarão 18% de impostos, que financiarão projetos de educação, segurança e esportes, e uma outorga para poderem operar legalmente. O apostador pagará 30% de Imposto de Renda sobre a parcela dos prêmios que exceder a faixa de isenção.

É inegável que a nova legislação é um avanço. Entre a ausência de regulamentação e alguma regra, obviamente há um avanço. No que nos diz respeito ao nosso tema aqui nessas linhas, no entanto, o governo não toca. Não há nenhum regramento para a propaganda das casas de apostas e seus vultuosos investimentos. Em duros tempos para o financiamento do jornalismo, pouca gente quer abrir mão de anunciantes com bolsos tão profundos. Mas, e a notícia, vai ser penalizada? Estamos vendo uma novíssima vaca sagrada sendo erguida bem no centro das redações do jornalismo esportivo. Ela é cultuada a cada jornada esportiva, a cada live nas plataformas digitais. É adorada nos bonés e camisetas dos jornalistas. É celebrada em festas e cantada a plenos pulmões por aqueles que deveriam questioná-la.

Reportagem publicada originalmente em ObjETHOS.

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Álisson Coelho é doutor em Comunicação, coordenador do curso de Jornalismo da Universidade Feevale e pesquisador associado do ObjETHOS