Mais uma vez aconteceu uma tragédia quadrienal: o Brasil perdeu outra Copa do Mundo de Futebol. Como não poderia ser diferente, a imprensa futebolística, quase sempre se posicionando como ‘dona da verdade’ e com respostas para todos os problemas dentro e fora do gramado, atacou ferozmente o técnico Tite. Em caso de derrota, a ofensiva já era naturalmente esperada, porque o técnico invariavelmente é sempre o culpado nas campanhas malogradas da Copa do Mundo. Já foram culpados Telê, Dunga, Zagalo, Felipão e outros… A história sempre se repete. A imprensa futebolística brasileira é complexa e não obstante vale a pena experimentar analisá-la.
Com o novo fracasso, o treinador se tornou um grande buraco negro onde todos os problemas do desempenho da equipe acabaram se convergindo. Numa dessas exposições recentes sobre a atuação do Brasil, comentaristas fizeram suas colocações como se o técnico tivesse fisicamente o completo manuseio dos seus jogadores tal qual um enxadrista move peças num tabuleiro. É notório que entre uma instrução ou orientação do treinador e sua pretensa execução há um espaço imenso. Os pés e cérebros dos atletas não são extensões físicas dos técnicos, como alguns querem fazer crer.
Tenho forte convicção que a performance de um time de futebol está 50% ligada ao trabalho do treinador e 50% das próprias atitudes e decisões dos jogadores em campo, e não apenas ao maestro do time. Nos velhos tempos, o ex-jogador do Corinthians e professor de Educação Física, Wladimir, chegou a dizer numa entrevista, que um técnico de futebol era responsável por apenas 30% do desempenho do time em campo o resto era com os jogadores.
Todos os jornalistas sabem que uma das atribuições das narrativas jornalísticas é a criticidade, mas de forma ética e não apenas simplista. Um treinador tem muito poder, mas ele não tem todo o poder. Os coleguinhas costumam fazer suas críticas sempre como senhores da razão, além de possuir o dom divino da onipotência e onisciência da ciência do futebol.
Tradicionalmente a crônica esportiva classifica a seleção nacional como ‘campeã antecipada’, sem ainda sequer ter jogado uma partida. O clima efusivo do ‘já ganhou’ contagia muito sucessivamente as páginas e as telas dos meios de comunicação nos anos de Copa. Este problema crônico da narrativa futebolística e que desencadeia muitas frustrações poderia estar ligado talvez a um fato simples para o brasileiro: o futebol não é esporte, é uma paixão e às vezes até um delírio social. Nas locuções da televisão e do rádio a razão frequentemente perde de goleada para emoção.
Em verdade os cronistas nunca se colocam como humanos que podem também errar ou fraquejar. Uma situação muito instigante é que o Brasil quando perde invariavelmente joga mal e o adversário nunca joga bem. Afora isso, na opinião dos ‘futjornalistas’ a sorte ou acaso são verbetes que não constam no glossário dessa modalidade.
Os resultados no futebol e outros esportes, assim como na vida, são frutos de uma sucessão de erros e acertos. E o esporte bretão, como poucas modalidades esportivas, tem como peculiaridade produzir ocasionalmente vencedores, que jogam pior do que os perdedores. Há exemplos também em outras modalidades.
Na última Olimpíada, o boxeador brasileiro, Herbert Conceição, estava perdendo claramente sua luta pela medalha de ouro, mas disparou um cruzado preciso no queixo do adversário, que acabou encerrando o combate. Se o lutador não tivesse achado esse recurso jamais teria sido campeão. No futebol muitas vezes acontece a mesma coisa. Um time que joga pior pode vencer apenas com um golpe fortuito como um chute solitário ou uma jogada inspirada, mas totalmente isolada durante a partida. Em outras palavras, em numerosas situações a oportunidade pode destruir a virtuosidade.
Nas análises dos comentaristas esportivos ‘tupiniquins’ parece estar continuamente presente uma solução segura e certeira de uma partida de futebol. As colocações expostas nunca admitem dúvidas ou suspeitas, muito menos qualquer tipo de fraqueza ou hesitação humana. Frequentemente ouvimos apreciações que mais parecem fórmulas matemáticas infalíveis. Em certas circunstâncias há cronistas que tratam as partidas como uma verdadeira ciência exata, sem variáveis incontroláveis, surpresas e casualidades. O fato é que essas disputas ‘boleiras’ obviamente jamais terão essa segurança científica.
Os cronistas esportivos brasileiros, em boa parte, defendem que o futebol não pode ter uma lógica apenas numérica, pois é preciso apresentar arte, conter beleza, paixão e desenvoltura sempre. O resultado para muitos seria uma consequência. No entanto a história tem demonstrado que este raciocínio não contém uma verdade absoluta. Nesta edição da Copa do Mundo, mais uma vez o Brasil jogou com lindeza em vários gols e jogadas, mas as divindades do futebol acharam por bem não contemplar a equipe com a vitória.
Na Copa de 1982, a seleção Brasileira passou por essa experiência. Uma equipe exímia com grandes valores encantou, mas não levou, como se dizia na época. O jogo bonito, que a imprensa brasileira sempre ardorosamente advoga, não foi suficiente para garantir à seleção nacional o título mundial daquela edição. Ficou a lembrança, mas não o resultado.
O futebol bonito não é suficiente para a conquista de uma Copa. Portanto, o ludopédio, o nome barroco desse incrível esporte, pode ser feio desde que seja eficiente e acumule gols. Gol de bico e canela também valem.
Ficou claro, definitivamente, que a modalidade não é igual a esportes como a ginástica artística ou saltos ornamentais em que a beleza do movimento é tudo, é gol. Mas fica uma sugestão: os cronistas absolutamente apaixonados pela beleza futebolística poderiam advogar a mudança no regulamento da Copa. Em vez de disputa de pênaltis, uma comissão de notáveis julgaria a beleza do jogo, tal qual um concurso de miss…
Outro aspecto pouco mencionado pelos craques do microfone, teclados de computador e caneta é que a seleção não se preparou adequadamente nesta Copa para uma nova condição de disputa, os jogos com prorrogações e principalmente em cobranças de pênaltis. A autoconfiança do futebol brasileiro parece que levou os especialistas a acreditarem que tudo seria resolvido no tempo regulamentar e com muita beleza. Ninguém falava na mídia sobre as cobranças das penalidades antes dessa competição, vai ver por que são feias.
Além disso, pouco se comentou diante das câmeras sobre os tradicionais chutes fortes de longa distância e cobranças precisas de faltas que sumiram do cardápio da seleção. Ninguém está falando sobre isso e se mencionam alguma coisa tem sido muito pouco.
Em múltiplas situações que exigem imparcialidade, alguns profissionais do jornalismo esportivo mais parecem torcedores com microfone na mão, do que cronistas especializados equidistantes e principalmente comprometidos com a verdade e a neutralidade editorial. Aqui concretamente entra uma questão legal e técnica. Pela legislação vigente, locutores e comentaristas são tipificados como radialistas, não como jornalistas, portanto talvez tenham mais ‘licença poética’ para suas ponderações e menos compromisso com a expressão da verdade. O jogo, afinal, tem que ser show.
Sobre a questão, Galvão Bueno em entrevista à Veja chegou a se definir na oportunidade: “Costumo me autodenominar como um vendedor de emoções. Trabalho com essa coisa meio explosiva chamada emoção. Preciso que as coisas me emocionem para que eu tenha um bom produto, para poder vender essas emoções”. Sendo assim, não se pode esperar imparcialidade nas transmissões. Mais comedidos e controlados, os ex-jogadores, agora comentaristas, discorrem com maior parcimônia, talvez até pelo ‘espírito de corpo’ dos futebolistas. Nos meios impressos, no entanto, parece que a imparcialidade é mais constante, como dispõe a teoria do jornalismo.
Como atributo o brasileiro médio costuma admirar a humildade, mas na prática quando se trata de futebol, ele não é nada modesto. A seleção brasileira que vai para a Copa invariavelmente é eterna candidata ao título. Entretanto, há décadas essa glória não vem e os times não chegam sequer nas quartas ou semifinais. A imprensa, portanto, erra sistematicamente nas previsões e tem se tornado um dos players que devem estar estimulando esse comportamento arrogante ‘copístico’ dos brasileirinhos. Afinal a mídia forma opinião.
Outra característica marcante na cultura da imprensa futebolística é seu apego extremado à história e tradições, retomando continuamente com saudosismo outros elencos de relevo, bem como os craques do passado. Há matérias demais revivendo a história de glórias e conquistas. Existem jogadores de duas ou três gerações anteriores muito citados, que os mais jovens nem se dão conta da existência. É importante destacar alguns desses personagens ou casos, mas não ser o foco eternamente.
A rigor este autor não é um cronista esportivo, trata-se de apenas um despretensioso jornalista. Contudo também se define como um estudioso contumaz da imprensa e do seu modus pensanti e operandi. Não se apresenta também como detentor de respostas para todos os questionamentos desse tema. Pode ter errado em muita coisa que escreveu neste humilde artigo, mas tem a impressão que milhares de integrantes da opinião pública também devam pensar do mesmo jeito ou pelo menos de forma parecida. Invariavelmente, jornalistas adoram criticar, mas odeiam ser criticados.
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Paulo Sérgio Pires é jornalista, publicitário e professor de Comunicação. Foi repórter do jornal Metrô News e do Diário do Comércio e Indústria- DCI, além de ter sido colaborador da Folha de S.Paulo, Agência Folha, revista Man’s Health e Querida, entre outras publicações. É pós-graduado e mestre em Comunicação pela USP, onde foi pesquisador-bolsista.