O apaixonado debate sobre a regulamentação das plataformas digitais corre o risco de priorizar apenas uma parte dos interesses em jogo, deixando de lado duas questões fundamentais. A atual agenda das discussões na mídia, no parlamento e nos tribunais, está sendo ditada pelos conglomerados empresariais da comunicação e pela aliança entre os três poderes da República. Em compensação, omite-se a questão da apropriação de dados pessoais por redes sociais como Facebook, X (ex-Twitter), Instagram, YouTube, Google, Telegram, TikTok e WhatsApp, para mencionar as mais conhecidas. A outra grande omissão se relaciona à necessidade de distinguir claramente o negócio das plataformas da sua função estrutural dentro da chamada comunicação relacional na era digital (1).
A feroz campanha dos principais órgãos da imprensa contra as plataformas ocorre no contexto de uma mudança no relacionamento entre as partes. No início da década passada, a maioria dos grandes jornais mundiais acreditava que redes como Facebook eram o canal mais eficiente e barato para chegar até o grande público. Os principais grupos de comunicação da Europa e Estados Unidos procuraram acordos estratégicos com a empresa de Mark Zuckerberg, como foi o caso do The New York Times. O acordo previa que o NYT faria parte da estrutura do Facebook, o que lhe daria a possibilidade de ter acesso a um público estimado na época em um bilhão de pessoas.
Mas, com o passar dos anos, a evolução dos fatos mostrou que as plataformas funcionavam mais como um ambiente para usuários da internet comentarem e compartilhar notícias do que como uma infraestrutura obrigatória para a sobrevivência da imprensa. Isto levou os jornais a ter que repensar suas estratégias, já que não bastava mais apenas levar notícias ao público, mas sim vendê-las e participar do bilionário negócio publicitário criado pelos usuários da rede social.
Hoje, os grandes jornais brigam com as redes por faturamento e não por acesso ao público. Nesta briga por maiores receitas, a imprensa incorporou o tema das notícias falsas (fake news) como parte do esforço para recuperar a credibilidade em jornais, revistas, rádios e telejornais, em queda no mundo inteiro desde meados dos anos 90. Outro argumento indiretamente vinculado ao interesse financeiro é a questão dos direitos autorais (2) como forma de dissimular a prioridade dada ao fator principal que é a sobrevivência do modelo de negócio da imprensa baseado na venda de publicidade.
Audiência planetária das redes
Para o futuro do jornalismo, a questão das plataformas é um tema crucial porque tudo indica que o exercício da profissão precisará delas tanto quanto foi dependente da tinta e do papel no início do século XIX, quando surgiram os primeiros jornais impressos. A questão está vinculada às dimensões do espaço público de debates. Até agora, este espaço era reduzido porque a soma das tiragens de todos os jornais impressos no mundo não chegava a 100 milhões de exemplares, segundo estimativas da enciclopédia virtual Wikipedia , o que permite avaliar em cerca de 500 milhões o número de leitores potenciais. Hoje, só a rede Facebook, atinge 3,05 bilhões de pessoas em todo o mundo. Se antes a imprensa convencional dominava o ciclo completo do noticiário (captação, processamento e distribuição de notícias), agora ela tem que compartilhar essas atividades com multidões de usuários de redes sociais, através de um relacionamento que ainda não é possível desenhar.
Neste esforço para sobreviver à necessidade de adaptação às mudanças geradas pelas tecnologias digitais, a grande imprensa se aliou ao establishment político e econômico, tendo como ponto em comum o combate à proliferação das notícias falsas, da difamação e do discurso do ódio através das redes sociais. É um fato notório que todas estas gravíssimas distorções informativas encontraram nas plataformas digitais o ambiente favorável à sua multiplicação exponencial o que, obviamente, implica a necessidade de combatê-las por todos os meios legais possíveis.
Fake news e desinformação
Enquanto a imprensa combate as fake news para recuperar a credibilidade e, consequentemente, o valor de compra das notícias, políticos, juízes e advogados querem a regulamentação das plataformas para intensificar punições capazes de simplificar a solução de uma questão complexa criada pela avalanche informativa na internet. A superoferta de notícias online permite a veiculação de várias versões e opiniões sobre um mesmo dado, fato ou evento, o que complica a classificação em certo ou errado, legal ou ilegal, verdadeiro ou falso. O aumento de organizações especializadas na checagem da veracidade de notícias ampliou o combate às notícias falsas, mas a desinformação, como subproduto das fake news, ainda é relativamente pouco enfrentada pela imprensa, apesar dos danos possíveis à convivência social.
Os excessos cometidos por Facebook, Instagram, Twitter, Telegram, TikTok e Youtube na gestão da desinformação online devem ser corrigidos por meio de uma regulamentação que, em vez de enfatizar a questão punitiva ou financeira, priorize a questão dos fluxos de informação através das redes. É essencial levar em conta que a comunicação na internet passou a ser relacional, ou seja, as notícias e informações circulam a partir do fluxo de recomendações entre as pessoas. Os dados indicam que já chega a quase 50% o número de usuários que buscam notícias no Facebook nos Estados Unidos e 35% na Europa. O mais significativo é que estes percentuais vêm duplicando a cada três anos, conforme dados do Reuters Institute for the Study of Journalism (Instituto Reuters de Estudos Jornalísticos).
A notícia está deixando de ser um produto entregue pronto e acabado ao público por jornalistas para ser uma forma de conhecimento desenvolvida conjuntamente por pessoas comuns, jornalistas e formadores de opinião. Como a notícia passa a ser o resultado de uma relação social, o combate às fake news incorpora obrigatoriamente os usuários das plataformas no combate às distorções informativas, o que coloca o debate sobre regulamentação noutro patamar. Fica evidente que não é mais possível resolver um problema complexo e que envolve tantas questões diferentes, com soluções simples, tipo verdadeiro ou falso.
O novo colonialismo
Complexidade que fica ainda mais evidente quando se constata que apesar das grandes plataformas digitais praticarem o chamado colonialismo de dados (3) e adotarem uma distribuição desigual das receitas publicitárias alimentadas pela atenção dos seus usuários, ainda assim elas são a fonte de quase 70% do faturamento de pequenos projetos jornalísticos online. O jornalismo local ou independente pode acabar vitimizado por uma eventual demonização de redes sociais como Facebook, Instagram, TikTok e X durante os debates e a votação do projeto de lei de regulamentação das plataformas. Quase todos os projetos de notícias comunitárias e páginas informativas produzidas por jornalistas individuais utilizam as plataformas digitais e seus aplicativos online para chegar até o público. As plataformas digitais viabilizaram uma maior democratização das comunicações, apesar do fluxo de informações ainda ser controlado por apenas cinco megaempresas.
Notas
(1) A Comunicação relacional baseia-se em recomendações, entre indivíduos, de conteúdos informativos. Ela já existia na era analógica, mas era unidirecional, o jornalista sugeria informações ao público. Na era digital, a comunicação relacional passou a ser desenvolvida de forma multidirecional, ou seja, várias pessoas sugerindo notícias umas para as outras. O fenômeno da viralização em redes sociais é um exemplo de comunicação relacional.
(2) O direito de autoria é uma solução financeira criada no século XVIII para monetizar bens intelectuais reproduzidos em textos, imagens, sons e objetos. Com a digitalização, a produção intelectual passou a ser expressa, de forma imaterial, em dígitos 0 e 1, o que permitiu a recombinação sem identificação da origem. A recombinação, ou remixagem, está na origem das inovações que hoje alimentam a moderna economia digital.
(3) Colonialismo de dados é uma expressão consagrada pelo sociólogo britânico Nick Couldry para identificar o processamento e comercialização de dados obtidos gratuitamente pelas chamadas Big Techs (Facebook, Google, Twitter, Microsoft e Apple).
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.