No país de Bolsonaro não terá a menor importância o desfecho do debate que rola no nosso país, aquele que o capitão chama de “País de Maricas”: estamos preparados para modificar o léxico e adotar o gênero neutro?
Bem vindes, menines, todxs, bruxes, ile, elu, @, X, dile, delu. Todes lindes, certe?, amigues queridxs?
A coisa vai longe e já ganhou página dupla na Folha de S.Paulo, foi reportagem de capa do caderno de Fim de Semana Eu& do Valor, tudo neste mês. Walcyr Carrasco prometeu na Veja incluir pelo menos um personagem “com esse jeito novo de falar” na próxima novela, Verdades Secretas 2. Já há uma série na HBO, TODXS. E restaurantes em São Paulo apresentam cardápio nesta linguagem não binária.
A briga é grande entre os cultivadores da língua culta que, ao contrário do inglês, adota a diferença de gêneros. A língua inglesa resolve o problema com “they”, serve para todxs. Nós temos de abdicar do “o” e do “a” para o nosso português que há 30 anos ainda se esfola para ver obedecido o Acordo Ortográfico firmado em 1990 entre países de Língua Portuguesa.
O português já vinha atolado de galicismos, do tik tokês e do inglês que entrou de sola para deletar, fazer delivery, “estar fazendo” — uma sintaxe estranha. Cheia de clichês ou erro mesmo, é o país de Bolsonaro em ação, denunciando o precário domínio do português que o governo estimula taxando os livros a 20% ou mais — “só rico compra livro” —, militarizando nossas escolas, podando incentivo a projetos culturais e ao pensamento livre. Mas as mudanças na escrita são mais lentas do que na fala e a língua não se importa com regras, está em plena mutação. É tão rápida que já é cringe falar em cringe.
Nunca veremos Bolsonaro se dirigir aos “Queridxs Brasileireirxs”, mas o seu ataque à população LGBTQIA+ incita a comunidade não binária a marcar espaço. Se não na sociedade, pelo menos na novalíngua e na espécie de Tinder que criaram, como a atriz Bruna Linzmeyer fez com o seu instagram Brindr para lésbicas.
Tudx certxs? Não. Se os homossexuais estão conquistando o seu espaço na língua, nada é tão pacífico assim. Mulheres transgêneras fizeram uma barricada contra o professor de criminologia que considerou, numa palestra na Universidade de Essex, colocar mulheres transgêneras na cadeia. O discurso de ódio correu entra as TERF, trans-exclusionary radical feminist, as feministas radicais transexclusivas. As mulheres querem garantir seu espaço.
Mulheres apenas mulheres, não trans, não sujeitas ao transfobismo, estão preocupadas com a perda de espaço, a perda até do gênero feminino com esta linguagem e a perda do “a”. “Não somos corpos com vaginas”, reclamaram da linguagem utilizada na publicação médica Lancet, onde o nome “mulher” é substituído por “people”, pessoa. Não são trans nem binárias, são mulheres. E não podem ser definidas como os únicos seres que possuem cervixes (o colo do útero). Os trans apagaram o feminino.
Damares, a ministra que acha normal Bolsonaro retirar absorventes das mulheres (“mulheres sempre mestruaram, ora”), não vai gostar de saber que as mulheres não estão aprovando a entrada de homens que se dizem mulheres em seu banheiro público ou no seu time feminino de rugby ou futebol. Esta é a matéria publicada no The Economist também este mês, “She who must not be named”, ela, que não deve ser mencionada.
Pois as mulheres não querem ser todxs, nem todes. Querem o seu “a” de volta. Sem linguagem “cunilíngua” como definiu Gregório Duvivier na Folha de S.Paulo há uns dias, não querem ser vulva nem cervixes nem ser anuladas por X nem por @. Muito menos por Bolsonaro (“dei uma vacilada”, sobre a filha mulher que teve) e pela Damares, que vê pornô até em meninos que vestem rosa e mulheres de azul.
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Norma Couri é jornalista e Diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade na Associação Brasileira de Imprensa (ABI).