Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Mulheres latino-americanas: um contexto de duplo sofrimento

Foto: H. Cámara de Diputados de la Nación

A imprensa latino-americana, como a da França e a da Europa, na segunda-feira, 8 de março de 2021, noticiou com destaque, na primeira página, esse dia dedicado ao encontro feminista realizado anualmente. Ela destacou o significado simbólico desta data. Ela eventualmente informou alguns locais de manifestação, ou seus substitutos, tendo em vista as limitações impostas pela pandemia.

Aqui, na América Latina, e lá, na França ou na Espanha, o dia 8 de março tem o mesmo alcance e objetivos? No que diz respeito à aspiração da América Latina de ser mais ampla e melhor reconhecida, não como um conjunto de países de terceiro mundo, mas como um espaço onde, tal como nesses outros países da Europa, as lutas feministas e avanços também têm lugar, sem dúvida. No entanto, os parâmetros de referência, a olhos nu, certamente não estão no mesmo nível. Lá, na Europa, se fala bastante em paridade, aqui, na América Latina, mais de direito à vida.

A crise de saúde que vivemos hoje não ajuda em nada neste cenário. O fosso entre as reivindicações priorizadas de um lado do Atlântico e aquelas do outro lado aumentou. A covid-19 prejudicou a longa marcha em prol do direito à vida e à igualdade das mulheres latino-americanas. Sem dúvida alguma, na América Latina como em outras regiões, há muitas diferenças quanto ao acesso a esses direitos, dependendo se você é uma mulher na Argentina ou em El Salvador, dependendo se você mora em um condomínio fechado ou em uma favela. A qualificação de ‘sofrimento duplicado’ remete ao aprofundamento atual de uma realidade que já era amplamente desigual, e que permanece qualitativa e estatisticamente fundamentada.

Crônica de sentenças atuais

Um exame do que ocorre cotidianamente em nossas sociedades fornece dados suficientes que justificam a mobilização encabeçada pelos movimentos feministas latino-americanos e organizada a cada ano. Violência doméstica, violência sexual, assassinatos políticos, abortos com risco de vida e submetido a penas jurídicas, desigualdade no acesso ao trabalho, desigualdade de renda, estes são alguns dos temas que figuram em destaque na agenda desses movimentos. É claro que todos os países assinaram e ratificaram os principais tratados internacionais de direitos humanos, garantindo a igualdade de tratamento entre homens e mulheres [1]. O divórcio desapareceu das demandas. Bolívia e Chile acabaram aprovando, em 2004, uma lei permitindo a rescisão legal do casamento civil. No entanto, os termos do divórcio ainda estão longe de ser universais. Os códigos civis do Chile, Honduras e Nicarágua, de fato, conferem ao marido a preeminência de chefe da família.

Quanto ao direito de dispor do próprio corpo, e o direito ao aborto voluntário, eles são realidade em uma pequena minoria de países. Há sem dúvida avanços quanto a esses aspectos. No entanto, eles são ainda rarefeitos e minoritários. Na América Latina, apenas Cuba, Uruguai e México, na cidade do México e no estado de Oaxaca, em 2020, reconheceram o direito à interrupção voluntária da gravidez. O Congresso argentino, ao final de uma ampla mobilização da opinião pública, ao longo de vários meses, aprovou uma lei autorizando a interrupção voluntária da gravidez, em 30 de dezembro de 2020. Há toda uma gama enorme de textos, no resto da América Latina, concedendo ou não o direito à interrupção voluntária da gravidez tendo em vista algumas exceções. Essa negação à interrupção voluntária da gravidez como um direito resulta em uma situação de grande risco de vida das mulheres que se submetem a procedimentos arriscados e clandestinos, como ocorre no Brasil, Chile, Guatemala, Paraguai e Venezuela, e até mesmo na prisão de mulheres, como em El Salvador.

A violência doméstica continua sendo uma grande preocupação entre as demandas do movimento. Os números falam por si. E isso já há muito tempo. A ONU Mulheres e a CEPAL (Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe) publicaram um relatório sobre o assunto. Este documento traz de forma clara, em números objetivos, o cenário comparado em 2018. Dos 25 países mais afetados no mundo por esse flagelo da violência doméstica, 14 são latino-americanos. Quatro estão no topo da lista, como El Salvador, em primeiro lugar, com uma taxa de 14 feminicídios por 100.000 mulheres; seguido por Honduras, com 11 feminicídios por 100.000 mulheres; em terceiro lugar vem a Guatemala, com 9 a cada 100.000 mulheres; a Venezuela, em nono, com 5 mulheres mortas a cada 100.000; a Colômbia, em décimo, também com 5 mulheres assassinadas a cada 100.000. A essa lista se somam, na sequência, o Brasil, em 13ª posição no número de feminicídios, a República Dominicana em 16ª posição, o Panamá em 19ª posição e o México em 23ª posição. Em números absolutos, em 2018, 3.529 mulheres foram assassinadas, das quais 1.206 foram mortas no Brasil e 898 no México [2]. Comparativamente, a taxa de violência doméstica que era, entre 2000 e 2014, de 19,3% na Europa Ocidental, ultrapassava 40% nos países andinos, era próxima a 30% na América Central e correspondia a 24% na América do Sul [3].

O coronavírus, um agravante multidimensional

A mera leitura de eventos atuais nestes tempos de pandemia dá o tom exato dessa disparidade gigantesca e desse sofrimento duplo das mulheres, e de sua luta, no contexto da América Latina. Em 21 de fevereiro, o diário equatoriano de Cuenca, El Mercurio, publicou um artigo sobre as consequências da pandemia para as casas de prostituição licenciadas da cidade. O município as fechou por motivos relacionados à pandemia, gerando fortes protestos de seus gestores — que garantem que “os protocolos de biossegurança” eram respeitados — e para o desespero das trabalhadoras que tinha, de apoiar esse protesto, dada a sua falta de alternativa econômica, tanto para elas se manterem como para manterem seus filhos. Em 8 de março de 2021, Dia Internacional da Mulher, o jornal dominicano Listin Diario noticia que uma senhora, demitida sem indenização pelo Ministério da Construção, após 16 anos de trabalho, protestou nua, em frente ao palácio presidencial.

As primeiras observações apontam para um “efeito coronavírus” que seria o responsável pelo agravamento de todos os problemas mencionados acima, como o desemprego, a falta de renda, e com eles a exposição ao risco e à humilhação. A imprensa noticiou um aumento da violência doméstica. No Rio de Janeiro, o Instituto de Segurança Pública relatou o aumento da violência contra as mulheres desde 13 de março de 2020, data do primeiro decreto de combate à Covid-19. De 13 de março a 31 de dezembro, 250 mulheres teriam sido vítimas de violência [4]. O mesmo vale para o Equador. Na Serra Andina, o Serviço de Segurança Integral Azuay atendeu o dobro de pedidos de ajuda desde o início da pandemia.

A pobreza também se feminilizou. A Organização Internacional do Trabalho disse que a pandemia teria destruído 13 milhões de empregos femininos em 2020, causando uma queda significativa de cerca de 5,4% na taxa de emprego feminino. Essa taxa despencou de 52% em 2019 para 46% em 2020. Consequência lógica disso, o percentual de mulheres desempregadas subiu de 10,3% para 12,1% [5]. Outro efeito também gerado por esse cenário, conforme comenta o diário argentino Ambito Financiero, é o de que desde o início dessa crise mundial da saúde, “as mulheres dedicam 70% do seu tempo às tarefas domésticas”, ocupação esta não remunerada [6].

De fato, estamos diante de uma dupla penalização, de um sofrimento duplicado para as mulheres latino-americanas nestes tempos de coronavírus. Talvez até mesmo triplicado se quisermos evocar, não podendo ir mais longe do que isso no espaço de um artigo como este, o lugar da igualdade de gênero na agenda institucional e social.

Igrejas, católicas e pentecostais, têm atuado fervorosa e politicamente de modo a impedir qualquer progresso em termos de legalização do aborto ou da garantia de direitos LGBT. Os governos, por isso mesmo, permanecem muito cautelosos mesmo aqueles que afirmam ser progressistas. Nós o vimos ontem no Equador de Rafael Correa. Vemos isso hoje no México de Andrés Manuel López Obrador. Quanto àqueles que se dizem de ‘direita’, como Jair Bolsonaro no Brasil, estes seguem à risca a versão “machista” de Deus, indicada pelas Igrejas.

Apesar disso, nada está definitivamente escrito. A América Latina foi a região do mundo nos últimos anos que mais levou mulheres à presidência da República [7].

Texto publicado originalmente em francês, em 10 de março de 2021, na seção ‘Analyses’ do Institut de Relations Internationales et Stratégiques – IRIS, Paris/França, com o título original “Femmes d’Amérique latine: un 8 mars en double peine”. Tradução: Adriana Cicero Amaral Fancio e Luzmara Curcino. Revisão de Pedro Varoni.

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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso – UFSCar.

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Referências

[1] Ver o balanço descrito no documento “Analisis de legislación discriminatoria en América Latina y Caribe en materia de autonomía y empoderamiento económico de las mujeres”, Panamá-Madrid, UN Mujeres-Secretaria General Iberoamericana, p. 15, 16.

[2] Conforme dados do Observatorio de Igualdad de genero de América Latina y el Caribe da ONU. Disponível em: https://org.cepal

[3] Conforme artigo publicado na Revista Cidob, n° 117, de dezembro de 2017, p.52.

[4] Conforme matéria publicada no “Jornal do Brasil”, em 8 de março de 2021.

[5] Conforme dados publicados em “Americaeconomia”, de 5 de março de 2021.

[6] Conforme declara o jornal “Ambito financiero”, de 7 de março de 2021.

[7] Na Argentina (Cristina de Kirchner); na Bolívia (Jeanine Añez Chavez); no Brasil (Dilma Rousseff); no Chile (Michelle Bachelet); na Costa Rica (Laura Chinchilla); no Panamá (Mireya Moscoso).