Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O jornalismo e as mulheres

Foto: Marcos Corrêa/PR

Quando Ana Arruda foi nomeada chefe de reportagem do Diário Carioca em 1966 era praticamente a única mulher na redação, e tinha de ser “macha” nas exigências com os jornalistas mais velhos para obter o devido respeito dos chefes homens. Hoje, 55 anos depois, existem mais de 15 mil mulheres na imprensa brasileira mas não chegam nem à metade do mercado, embora as mulheres formem a maioria na nossa sociedade. São quase 27 mil os jornalistas de sexo masculino. Assim mesmo temos de festejar. Nas redações e TVs as mulheres deixaram a rubrica “culinária” para os homens, e eles cumprem a pauta com tanto requinte e gosto que dá para perguntar por que não se ocupam da cozinha em casa também.

Essa tarefa ainda é uma obrigação feminina, o que faz a rotina da mulher triplicar. Quando chega em casa, a jornalista de economia, política, cultura ou esporte, tendo cumprido uma pauta tão pesada quanto a dos colegas masculinos, tem de se ocupar das crianças e do jantar. Mas pelo menos ainda é na mídia TV que o time feminino consegue preencher mais da metade dos postos de trabalho: nessa área existem 4040 mulheres contra 4007 homens, ao contrário das rádios onde o que cabe às mulheres é 20% do mercado. Tirando o mercado online e as revistas, onde as mulheres também conquistaram no primeiro 42% e no segundo quase 50% dos empregos, nos jornais o gênero feminino ainda fica a dever, não chega a 40% dos postos.

Ninguém está falando em cargos de liderança. Só 1/3 das mulheres estão na diretoria de um veículo de comunicação, ou no cargo de editora executiva, editora-chefe, presidente ou vice. E os órgãos de comunicação na maioria ainda pertencem aos homens. Cerca de 65% dos cargos de poder ainda estão nas mãos masculinas e os salários são vergonhosamente mais baixos. A discriminação existe e a desvalorização é reforçada por meios menos sutis como a ridicularização das formas do corpo feminino ou, pelo contrário, da cantada às vezes de mau gosto que coloca a profissional no lugar do objeto da sedução. E nem se trata de uma atração real, na maioria das vezes é golpe do macho para ganhar ponto com os colegas, como parece ter sido a passada de mão no lugar errado do deputado Fernando Cury na colega Isa Penna no plenário da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.

Jornalistas colecionam casos de assédio na profissão durante as entrevistas e há dezenas de incidentes até de estupro entre colegas ou partindo de um chefe. Em geral, não levam adiante, jornalista não é ou não deveria ser assunto. Pela própria formação, aprenderam a relatar a dor dos outros e dor há de sobra nessa área: foram 105 mil denúncias no ano passado, em plena pandemia 2020 registrou 290 denúncias de violência doméstica ou familiar — uma a cada cinco minutos. E o mesmo descaso registrado com as vacinas pelo governo contagiou a ministra da Mulher. Como o general Pazuello economizou contra a morte, Damares Alves economizou na violência contra a mulher gastando só R$ 35,5 milhões da verba destinada de R$ 120,8 milhões.

As jornalistas, em cargos inferiores, com salários menores, e tarefas dobradas pelo trabalho em casa, cobrem os abusos de Damares, o processo de violência doméstica que a ex-mulher do presidente da Câmara Arthur Lira move contra ele, o alvo de críticas sexistas que foi o lindo decote do blazer da Primeira Ministra da Finlândia Sanna Marin, os ataques à vereadora mais votada do Brasil, Érika Hilton, em São Paulo. E tornam motivo de chacota a saia confeccionada com gravatas dos colegas como a que a senadora Katia Abreu exibiu num país que ocupa o 140º lugar em representatividade feminina no Congresso — Katia é uma das 12 mulheres do Senado com 81 homens. Na Câmara são 77 para 513. Pior, só a coleira de Luma de Oliveira onde grafou o nome de Eike Batista e conquistou o marido milionário, agora no xadrez. Mas foi graças às coberturas delas que as mulheres galgaram espaços neste último meio século, e vão chegar lá.

O século XXI começa agora

Entre as mulheres que mais se destacaram no mundo está Jacinta Ardern, a Primeira-Ministra de 39 anos que assumiu a liderança na erradicação do coronavírus na Nova Zelândia. A agência Bloomberg analisou 53 países para identificar em qual deles a pandemia é melhor vivenciada, de acordo com os padrões sanitários e socioeconômicos. Jacinta Ardern colocou seu país no topo do ranking com 85,4 pontos. Entre os destaques, na balança entre a incidência de óbitos a cada 100 mil habitantes, o percentual de testes positivos e as baixas na economia, países governados por mulheres estão em disparada na frente: Finlândia, Noruega, Alemanha e Taiwan. Destaques para a Primeira-Ministra Sanna Marin de 35 anos e Erna Solerberg de 60 anos, que ocupam o cargo de Primeira-Ministra na Finlândia e Noruega, para a chanceler Angela Merkel na Alemanha e a presidente Tsai Ing-wen no Taiwan. O Brasil está entre os piores da lista, nossa situação sanitária e qualidade de vida despencaram

Fomos salvos por uma mulher que se chama Margareth Dalcomo, pneumologista, pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz, Fiocruz, que acredita, um quarto das vidas poderiam ter sido salvas se tivéssemos feito os acordos comerciais com os laboratórios na hora certa. O negacionismo nos tornou “pestiferados” no mundo.

— Não se iludam, ninguém vai poder viajar, nem para o Uruguai, sem uma carteirinha de vacinação. O mundo mudou, ac e dc, antes de depois da Covid-19, o século XXI está começando agora.

Sem querer ser precursora do apocalipse, a dra. Margareth diz que nem é preciso ler Boccacio no Decameron para saber, desde o século XIV, que as pestes, as doenças virais agudas, se tratam com distanciamento social. E vacinas. Não fizemos nem uma coisa nem outra e hoje temos mais de 10 milhões de casos, 261 ml mortos, podemos chegar a 3 mil mortos por dia. Na contramão do mundo perdemos 3 milhões de doses negando três vezes a vacina Pfizer, e outras tantas desprezando a Johnson & Johnson.

— O Brasil paga o preço de ter confundido a opinião pública com um discurso paradoxal que fez muito mal às pessoas, sem saber em quem acreditar, nas autoridades com curas preventivas de Covid-19 que não existem, ou na Ciência. Gastamos muita energia e jogamos muito dinheiro público fora. Estamos sendo salvos pela Fiocruz e o Instituto Butantã, AstraZeneca e CoronaVac, mas poderíamos estar no topo da lista, temos 40 mil postos de vacinação no Brasil, com capacidade para vacinar 2 milhões de pessoas por dia. Sem vacinas.

Sim, o Brasil é o novo epicentro da doença mas a dra. Margareth não ficou de braços cruzados diante da desgraça sanitária e humanitária que nos isolou, e matou. Ela procurou Luiza Trajano, empresária humanista que criou o grupo Unidos pelo Brasil e reuniu empresários de todo país para saber em que os cientistas achavam necessário investir para erradicar o vírus.

— Nós pedimos geladeiras, aviões, caminhões refrigerados para 5 mil municípios de prefeituras pequenas que não teriam condições de se suprir sozinhas, e conseguimos. Para salvar o Brasil precisamos de empatia e paciência. E a operação público-privada. Sempre me perguntam qual vacina pode nos proteger e eu respondo: qualquer uma, eu tomo qualquer uma, AstraZeneca, CoronaVac, a Pfizer e a Janssen da Johnson & Johnson — qualquer uma, os estudos de vigilância genômica provam que são eficazes.

Quando poderemos estar totalmente vacinados ainda é uma incógnita, fomos para o final da fila e neste momento corremos contra o tempo para recuperar vidas. Julho? Setembro? Final do ano? Se tem uma pessoa ocupada 24 horas por dia para encurtar esse processo é a dra. Margareth.

No mês da Mulher, temos de deixar a ministra Damares Alves e os mimimis de lado, e aplaudir a dra. Margareth Dalcomo pelo seu papel de Primeira-Ministra similar ao das líderes da Nova Zelândia, Noruega, Alemanha e Taiwan. Ela repassa o bastão para outras mulheres.

— Nesta pandemia eu dirijo meu respeito às mulheres que não puderam sair de casa, com crianças e trabalho dobrado, sem vencimentos, sem vacina, tendo que sobreviver a violência doméstica — essas foram as heroínas.

***

Norma Couri é jornalista e diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).