À primeira vista, a saga do vocalista do grupo Molejo, Anderson Leonardo, e o funkeiro de 21 anos, Mc Maylon, que o acusa de estupro, segue o curso habitual da violência em tempos digitais. Nessa economia sócio-midiática, o real sobrevive em forma de conteúdo, termo genérico para designar toda e qualquer imagem descartável com potencial viralizante.
Por mais horrenda que seja a violência, ela se banaliza em forma de tretas. Se nossas selfies não chegam ao status de fotografias, mas meras doações de sangue para que o organismo vampírico das redes sociais persista, como sugere o filósofo Nishant Shah, as tretas também servem de ração para uma matilha de famintos.
Leonardo e Mc Maylon se conheceram em 2020, na pelada seguida de música e “resenha” que o pagodeiro, que teve seu auge nos programas de auditório dos anos 90, organiza semanalmente. Em poucos meses eles já estavam se apresentando juntos em shows. Leonardo teria prometido apadrinhar a carreira do funkeiro, que diz jamais ter recebido pagamento pelas apresentações que fez, todas em plena pandemia.
Eles começaram a se chamar de “pai” e “filha”. Maylon tatuou o rosto do cantor em seu braço. Em dezembro de 2020, os dois foram a um motel em Sulacap, zona oeste do Rio de Janeiro, por volta da meia-noite. De acordo com Maylon, Leonardo tinha dito que era uma reunião de trabalho que tinha que ser feita às escondidas porque pegaria mal para Leonardo ser visto em público com um homossexual. Ainda segundo Maylon, ele teria dito à Anderson que queria ir embora. E que além de tê-lo como pai, ele era virgem.
Mas o pagodeiro teria recusado a acreditar, pelo fato de Mc Maylon se vestir como “puta”. Nessa mesma versão, Leonardo então bateu no funkeiro, que perdeu brevemente a consciência, e o estuprou. Maylon disse ter guardado uma cueca com seu sangue e o esperma do cantor, que foi entregue à polícia.
Leonardo nega o estupro e diz ter tido relações consensuais com Maylon.
Portais de notícias deram notas sobre o ocorrido, mas nenhum programa televisivo ou jornal de peso deu grande atenção. Poucas semanas antes da denúncia vir à tona, por outro lado, o Fantástico deu enorme destaque às acusações de abuso da influencer Duda Reis contra o funkeiro Nego do Borel, que parecia finalmente confirmar as fantasias mais racistas sobre o desejo de homens negros por mulheres brancas. Naquela ocasião, a internet quebrou.
A acusação de estupro do funkeiro de 21 anos, de gênero não-conformante, contra o pagodeiro, tido como heterossexual, revela um segredo aberto sobre como a heterossexualidade é vivida no Brasil. Segredos abertos funcionam enquanto o acordo tácito de silêncio entre as partes é vigente. O que talvez explique a timidez não só da grande mídia em cobrir o episódio, mas o dos usuários das redes sociais, sempre tão rápidos a destilar seus ódios. Como era de se esperar, esse ódio tomou a forma de ataques ao caráter da vítima. Poucos foram os comentários que questionavam a heterossexualidade de Anderson Leonardo. Era como se não houvesse qualquer surpresa de que um homem hétero tivesse relações sexuais com um homem gay afeminado.
Algo relativamente parecido ocorreu em 2016, quando um vídeo do ator Alexandre Borges se divertindo com algumas travestis vazou na internet. Não houve qualquer denúncia de abuso. No entanto, a revelação não proposital da plasticidade da heterossexualidade masculina em sua prática se reduziu ao alvoroço causado no Twitter, talvez mais pela qualidade explícita de sex tape das imagens. Na época, plataformas de maior alcance se recusaram à colocar o assunto em pauta. Borges só se pronunciou dois anos depois, dizendo que não entendeu o porque do escândalo. “Não me preocupei em saber que gênero era, que raça era, que partido era… Não tem isso… Não me privo de nada”.
Aonde estavam estes discursos quando, por exemplo, cada uma das 175 mulheres trans, 78% delas negras, foram assassinadas no Brasil? (Em 2020, por homens héteros que também não se privam de absolutamente nada).
No caso de Anderson Leonardo e Mc Maylon, várias contas do Instagram postaram sobre as acusações de estupro, o que trazia à tona, mais uma vez, o lado oculto da heterossexualidade brasileira: nem só de mulheres cis vivem os héteros. Leonardo e Maylon, no entanto, foram relegados aos cantos mais remotos das redes sociais para expressarem suas versões, até serem acolhidos pelo sensacionalismo de Roberto Cabrini, na RecordTV.
Maylon participou de lives da Mc Trans e Tchaka Drag Queen. E, além de compartilhar mensagens de apoio de seguidores anônimos, relatou depressão profunda e tentativas de suicídio.
Leonardo compartilhou stories de apoio de quase-famosos, como a cantora Perlla e o youtuber bolsonarista Rica Perrone, e fez uma live com Betoh Cascardo, auto-autointitulado “Betoh Barraqueiro,” na qual o cantor confessou: “Comi? Comi. Estuprei? Não”.
Cascardo, que alegou na live por diversas vezes ser um jornalista imparcial, relembrou ter defendido DJ Marlboro (recentemente acusado de estupro) antes de agir como advogado de defesa de seu amigo Anderson Leonardo. Cascardo falou que a acusação de Maylon teria mais credibilidade “se fosse uma coisa recorrente”, e gargalhou com as respostas de seu convidado acusado de estupro: “Eu nunca fiz uma entrevista tão gostosa!”.
O jornalista também disse que “seria muito desleal” pensar que Leonardo ia precisar estuprar alguém, quanto mais um homossexual que “pede tanta empatia […] e mancha a vida e honra de uma pessoa”, com o argumento de que Leonardo sempre teve “todas as mulheres” se jogando em cima dele.
Por fim, revelou que, como Leonardo e Borges, fica “com pessoas”, independentemente do gênero: “Quando começa a te encantar você já não vê cara, não vê corpo, você já não vê bolso”, disse Leonardo.
A live com Cascardo contém algumas das colocações mais grotescas que um acusado de estupro jamais deveria dar. Ela também expõe a dinâmica perversa da hetero-masculinidade brasileira — na qual a genitália não exclui o outro da rede de possibilidades sexuais não por uma questão de liberdade queer, por mais que esse discurso apareça num momento de administração de crise de imagem, mas porque o “outro” é sempre uma mera coisa submetida ao “eu”.
Por vezes, Leonardo alega que pensou estar “até apaixonado pelo cú” de Maylon, e que pensou até em casar com ele. “Falem de mim o que quiser, se falarem que eu sou gay, que eu sou bi, que eu sou tri, que eu sou tetra, que eu sou hexa, que eu sou septa… Não tô nem aí”.
Outras vezes, Leonardo fala que quis “comer logo”, para pôr um fim a Maylon. O raciocínio do cantor foi: “Come logo esse rapaz, que ele é chato pra caralho. Bota logo no cu dele. Bota no cu dele!”. Leonardo se refere ao ânus da vítima como um “boteco” onde — ao contrário do que ela diz — “vai muita cerveja, aquela taubua [sic] leva prego e leva de primeira”. Finalmente, ele recorre a mais previsível e ofensiva das táticas de desmoralização da vítima, culpando seu corpo e sua vestimenta: “O viado tava botando cada roupa colorida […] e com o maior bundão. Falei ‘cumpadi, esse viado! Eu vou botar no cu dele logo pra acabar essa porra’”.
Para vários gays que já ousaram se aproximar sexualmente de brasileiros que se definem como héteros, esse tom e essas frases podem parecer bem familiares. E, muita vezes, o preço a pagar para consumir seus desejos. Para muito héteros, a estória deve ter o gosto amargo de um disfarce que cai.
Já para o sociólogo Tomás Almaguer, o conceito de homossexualidade na América Latina se fixa não necessariamente ao objeto — com que/m transamos —, mas com o tipo de uso que fazemos dele: se o dominamos ou nos assujeitamos a ele. De acordo com essa lógica, o que determina a reivindicação de uma identidade heterossexual para um brasileiro cisgênero, por exemplo, não seria o fato de fazer sexo exclusivamente com mulheres cis, mas o de tomar para si consistentemente a função de “ativo” da relação sexual, com qualquer que seja o parceiro. Mesmo que, de fato, ele não o seja em termos literais: como Anderson, que revelou ter pegado na “long neck” de Maylon, que o chupou e que também pediu para ser penetrado.
O que chamamos de “objeto” do desejo na psicanálise ganha significado literal aqui, pois qualquer ato é performado de acordo com as ordens de apenas uma das partes — o “ativo,” que pode se dar ao luxo de até ser passivo, sem ter que renunciar seu título. Como o próprio Anderson colocou na live com Cascardo, “se eu tivesse ficado com um gay, com um homem, com um cavalo, com um jumento, com uma mulher… Não tô nem aí se é jamanta, se é jamantinho, se é isso ou se é aquilo”.
O ator Daniel Blanco recentemente respondeu a caixinha de perguntas do Instagram que ficaria com mulheres trans porque, afinal, são mulheres. A resposta veio no meio de outras perguntas aleatórias de seguidores, não como estratégia de relações públicas. No discurso de Leonardo e de outros que jamais se preocuparam em deixar transparecer o quão queer a heterossexualidade é na prática, homens insistem que se apaixonam ou desejam “pessoas,” independente de genitália ou identidade de gênero. Mas em seus atos mostram exatamente o contrário. Como consideram os outros como coisas (“um isso ou um aquilo”), pouco importa se são mulheres cis, mulheres trans, travestis, homens, “cavalo,” “jumento,” “jamantas” ou “jamantinhos.” A partir do momento em que a única relação possível é aquela na qual o outro está irremediavelmente submetido ao gozo do homem hétero, esse outro é intercambiável.
A filósofa Martha Nussbaum se refere a essa estratégia como um dos principais pilares da objetificação sexual como ato de violência sistêmica. Ela a nomeia “fungibilidade”: o objetificador trata o objeto como inerentemente substituível, pois ele é desumanizado. Outros pilares da objetificação sexual como artimanha heterosexual, de acordo com Nussbaum, incluem a “instrumentalidade”, onde o objeto aparece como mero instrumento para o prazer do objetificador, e a violabilidade: o objetificador não reconhece a integridade do objeto, que pode então ser quebrado, despedaçado.
Na mesma live, Anderson Leonardo se refere a Mc Maylon, “com todo o respeito do mundo,” como um objeto inanimado: “Não vou ofender à [sic] ninguém: […] ele sim, não é ser humano”. Então, Leonardo chama Maylon, que se disse virgem antes do estupro, de “[…] um terror já usado por outras pessoas, cujo ‘IPTU’ é ele que vai ter que pagar”, e compara as nádegas da vítima à uma “fatia de mortadela que deu vontade de comer pra ‘tirar a dúvida’”.
Anderson também diz que, se tivesse sido estupro, Maylon teria gritado “mais que porco quando está pra morrer”. E, ao fazer chacota da palavra ‘consensual’, diz que não conhecia o termo antes do ‘ocorrido’, porque “na época dele não existiam ambiguidades. Era assim: ‘abriu, permitiu, fechou não entra’”.
O segredo aberto da hetero-masculinidade brasileira é esse no qual homens gozam clandestinamente dos mesmos corpos que rechaçam e assassinam em público. É esse segredo aberto — héteros comem todos porque comem tudo — que os faz tolerar o fardo impossível da heterossexualidade “clássica,” ou de qualquer fantasia de uma identidade hermética e invariável. Esse segredo aberto, do qual somos todos cúmplices, revela como em qualquer ato sexual sob o regime heterossexista o estupro nunca está muito longe.
O poeta afro-americano Cameron Awkward-Rich relembra a função do estupro como um mecanismo de defesa de sujeitos hegemônicos contra a ambiguidade de gênero. Sujeitos que devem ser violentados para que sejam reduzidos à corpos.
Há uma reciprocidade obviamente perversa nesse mecanismo, onde a não-normatividade amorfa do outro é estabilizada como coisa. O objeto bem definido é o objeto sob controle. Na mesma cartada, o estuprador tenta reiterar seus discursos sobre si mesmo. A ficção inerente a qualquer categoria de identidade é reiterada no ato de violência “generizante”: A certeza de ser menino homem precisa ser repetida todos os dias, precisamente porque ela falta.
Essa certeza, a certeza dessa estabilidade fantasiosa sem fluidez ou poros, é a mascara que cobre a dúvida. Ou a máscara que cobre uma outra certeza: a de que há um abismo entre o discurso e o exercício de qualquer sexualidade; entre o que somos e o que fazemos. Aqui, o estuprador estende essas ficções, o segredo aberto, sobre si mesmo quase ao infinito, tomando para si todo e qualquer corpo como objeto/abjeto para que ele continue a reivindicar seu nome, mesmo que — ou precisamente porque — suas práticas contradizem suas categorias.
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Diego Semerene é doutor em Cinema pela Universidade do Sul da Califórnia e professor em Mídias Digitais na Oxford Brookes University (Inglaterra).