O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tem deixado uma bola picando nas entrevistas que merece a atenção dos colegas repórteres. No meio das conversas, ele tem dito, referindo-se às pessoas que quebraram tudo que encontraram pela frente em 8 de janeiro nos prédios do Congresso, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília (DF): “Estão chamando de golpe de estado um bando de pessoas idosas enroladas na bandeira do Brasil e com a Bíblia na mão”. Alguém precisa perguntar ao ex-presidente o que ele considera um golpe de estado. Somando a vida parlamentar com o mandato de presidente, Bolsonaro já está na estrada da política há quase 40 anos. Durante todo esse tempo tem elogiado as Forças Armadas, que articuladas com parte da direita e com o governo dos Estados Unidos da época, deram o golpe militar de 1964, derrubando o então presidente da República João Goulart, o Jango, do antigo PTB gaúcho. Foi o chamado “golpe civil-militar de 64”, que durou até 1985.
Em 1964, o ex-presidente tinha nove anos e vivia com os pais no interior de São Paulo. Há um vasto material na internet sobre o golpe. Vou resumir o que aconteceu para contextualizar a nossa conversa. A tomada do poder pelas tropas militares foi uma operação rápida, porque o país era pobre e carente de estradas e telefones. Dos seus 79 milhões de habitantes, quase a metade (33 milhões) vivia no campo, sendo que a maior parte deles eram pobres e sem terras. Para se manter no poder durante 21 anos, os militares prenderam ilegalmente civis e torturam e mataram muitos políticos. Entre os torturadores, um deles merece destaque. O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), que várias vezes foi citado como herói por Bolsonaro. Lembro que, em 2016, como deputado federal pelo Rio de Janeiro, mencionou Ustra quando votou pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). Toda a carreira parlamentar de Bolsonaro foi ancorada entre os militares saudosistas do golpe de 1964. Mais ainda. O ex-presidente não considera a tomada do poder em 1964 um golpe de estado. Mas sim um movimento político legitimado pelo fato do posto de presidente estar vago, porque Goulart fugira para o Uruguai e o país não tinha vice-presidente desde que o próprio Jango, que havia sido eleito para o cargo em 1960, assumira a Presidência com a renúncia de Jânio Quadros, em 1961 – a história toda é encontrada na internet. Bolsonaro vem dando essa explicação sobre 64 através dos anos. O quebra-quebra que aconteceu em 8 de janeiro em Brasília é descrito por ele como um episódio praticado por gente da esquerda infiltrado entre idosos com bandeiras do Brasil amarrada no corpo e uma Bíblia na mão. Um acontecimento que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que havia assumido o governo uma semana antes, teria deixado acontecer para se beneficiar dele politicamente. Não é essa a história que contam os depoimentos de 1,4 mil pessoas que foram presas na ocasião e a investigação da Polícia Federal (PF) – há matéria na internet.
Portanto, é o seguinte. Tudo o que aconteceu em 1964 e em 8 de janeiro de 2023 é fartamente documentado por investigações policiais, historiadores e pesquisadores. Antes de seguir em frente com a nossa conversa vou dar uma explicação que considero necessária. O que aconteceu em 1964 é impossível se repetir hoje por vários motivos. O Brasil não é mais um país rural. A maioria dos seus mais de 200 milhões de habitantes vive nas cidades. E grande parte dos agricultores, pequenos, médios e grandes, formam uma classe média rural, graças às novas tecnologias que usam nas lavouras e à globalização dos mercados de grãos, carnes e outros produtos agropecuários. A questão da reforma agrária, que era a principal pauta das lutas sociais no campo, vem sendo resolvida por pressão de organizações como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e outras. A grande questão nos dias atuais é a preservação do meio ambiente, em especial da Floresta Amazônica. Aqui é o seguinte. O governo do ex-presidente Bolsonaro propositadamente desmontou todo o aparato de fiscalização dos órgãos ambientais e, com isso, facilitou o avanço do desmatamento e dos garimpeiros ilegais nas terras indígenas. Concluindo a minha explicação. O país tem dimensões continentais e uma razoável rede de estradas, comunicações e outros serviços. A sua economia se perfila entre as 10 maiores do mundo. Neste cenário, tentar um golpe militar ao estilo 1964 ou ao tentando em 8 de janeiro é o mesmo que soltar um dinossauro dentro de uma loja de cristais. Ele vai quebrar muitos cristais. Mas a loja permanecerá em pé. No caso aqui, a loja é democracia brasileira, que é jovem. Mas tem demonstrado ter musculatura forte o suficiente para resistir a conspirações golpistas.
Voltando a nossa conversa. Seja lá o que for que o ex-presidente da República defina como golpe de estado, a atual situação econômica, política e social do Brasil é por demais complexa para se preocupar com o que Bolsonaro pensa sobre o assunto. Há uma série de assuntos no Congresso, como a reforma tributária, que interessam a todos os brasileiros. E outros problemas em várias áreas governamentais, como a enorme fila de espera pela aposentadoria e por perícias médicas no INSS, que precisam ser equacionados e resolvidos logo. Se perguntarem para o ex-presidente, baseado só nos fatos que vêm acontecendo, ele dirá que não considera tentativa de golpe de estado o 8 de janeiro. Portanto, existe a possibilidade de tentarem novamente. Inclusive, há boatos sendo publicados como se fossem matéria de jornal sobre a possibilidade de movimentos contrários ao governo atual se manifestarem no próximo 7 de setembro, Dia da Independência. Não haverá problema se as manifestações forem feitas dentro da lei. Considero importante o ex-presidente definir o que é golpe de estado.
Reportagem publicada originalmente em “Histórias Mal Contadas”
***
Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.