Historicamente, a grande imprensa brasileira – oligopólio formado pelas famílias que controlam a maioria das informações que circulam no país – tem se vendido como imparcial, confiável, apartidária, objetiva, aberta ao contraditório, favorável a pluralidade de ideias e, em certos casos, até como “neutra”. Trata-se de mera retórica, pois, na prática, os grupos midiáticos hegemônicos são verdadeiros fabricantes de desinformação.
Se formos definir a atuação desses veículos de comunicação em uma palavra, provavelmente é “manipulação”. No entanto, não basta afirmar que “a mídia manipula”, afinal de contas, lembrando Kant, não existe a realidade em si. Todos nós, de uma forma ou de outra, manipulamos a realidade, de acordo com nossos valores e visões de mundo.
Nesse sentido, é fundamental compreendermos dois pontos: 1) Quais interesses as manipulações midiáticas atendem? e 2) A quais artimanhas a grande imprensa recorre para distorcer os fatos?
Os grupos de comunicação hegemônicos no Brasil – emissoras de TV, estações de rádio, jornais de circulação nacional e portais de internet –, sem exceção, são propriedades privadas. Como todo empreendimento capitalista, visam, essencialmente, aumentar seus lucros. Para tanto, recorrem a anunciantes que estão ligados ao grande capital. Isto posto, não é difícil concluir que as linhas jornalísticas desses grupos estão a serviço dos interesses da classe dominante, ou, recorrendo ao vocabulário marxista, da burguesia.
Falando nisso, segundo Marx, numa sociedade marcada pela luta de classes, os interesses da burguesia (minoria) são antagônicos aos interesses da maioria da população: proletariado. Indo direto ao ponto: o que é bom para o rico, é ruim para pobres e classe média (embora muitos da classe intermediária ainda acreditam que essa premissa é falaciosa). Diante dessa realidade, como fazer com que os interesses da burguesia predominem no tecido social? Não basta o uso da violência, por meio dos aparelhos repressivos do Estado. Aí entra o discurso ideológico, cujo objetivo é fazer com que as ideias da classe dominante sejam vistas como naturais (sempre existiram) e universais (válidas para toda a sociedade).
Conforme o sociólogo e jornalista Perseu Abramo, analisar as práticas de manipulação da grande imprensa brasileira requer entender como determinados fatos são ocultados, fragmentados e/ou enquadrados. Nesse sentido, são estrategicamente excluídas dos noticiários as informações que não interessam aos grupos de comunicação (mobilizações por direitos, êxitos de programas sociais ou os índices educacionais e de saúde positivos de países considerados hostis pela cultura ocidental, como Cuba, Coreia do Norte, Vietnã etc.).
Quando não se pode esconder um acontecimento considerado inconveniente, busca-se fragmentá-lo e enquadrá-lo, para que a audiência só conheça uma parte (a que interessa ao viés da linha editorial) ao invés do todo. Por exemplo, uma greve, no discurso midiático, não tem causas (reivindicação de melhores condições de trabalho), somente consequências (transtornos no trânsito e falta de prestação de um determinado serviço).
Este mesmo mecanismo de manipulação é usado para demonização dos povos muçulmanos. Assim, é gerada a impressão de que, em 11 de setembro de 2001, “do nada”, fanáticos islâmicos atacaram as Torres Gêmeas em Nova York. Já o conflito Israel-Palestina começou no dia 7 de outubro de 2023, quando “terroristas” do Hamas atacaram Israel, “a única democracia do Oriente Médio”.
Aliás, associar determinados movimentos, civilizações, países e governantes a palavras de forte carga semântica negativa é uma prática de manipulação frequente nos discursos midiáticos. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é sinônimo de “invasão” e não de “ocupação” de terras. Governantes latino-americanos, contrários aos interesses do imperialismo, são “ditadores” e seus países, consequentemente, “ditaduras”. O fato de haver eleição direta para presidência da República, com direito a voto para toda a população, é o que menos importa.
Quando a manipulação lexical não surte efeito, é preciso manter a audiência alheia aos acontecimentos políticos importantes. É o chamado “distracionismo”, colocado em prática via indústria cultural, programas de entretenimento ou mesmo nos noticiários. Em julho de 1998, ano eleitoral, o governo de Fernando Henrique Cardoso estava a todo vapor com sua política neoliberal de terra arrasada. Mas, no Jornal Nacional, a principal notícia era o nascimento de Sasha, filha da apresentadora Xuxa Meneghel. Sem dúvida, um acontecimento de fundamental importância para milhões de brasileiros.
Despertar no público certas emoções também é um poderoso mecanismo de desinformação. É aquilo que o linguista francês Patrick Charaudeau designa como “patemização”, estratégia discursiva que visa persuadir o interlocutor por meio de sentimentos como ira, revolta, compaixão, medo e alteridade. Pelo jornalismo sensacionalista, programas policialescos, ao superdimensionar o clima de constante insegurança, geram medo no público, podendo induzi-lo a aderir às ideias punitivistas e a apoiar práticas de violência policial em regiões periféricas. O conhecido bordão “bandido bom é bandido morto”. Isso não inclui, evidentemente, o “bandido rico”.
Não por acaso, o articulista da GloboNews, Guga Chacra, ao comentar a contraofensiva do Hamas em Israel, no último dia 7 de outubro, apelou para a demagogia: afirmou que as vítimas israelenses do “grupo terrorista” palestino eram “gente como a gente”. Em contrapartida, como os palestinos não possuem a mesma humanidade; podem ser massacrados.
Quando não se convence as pessoas a aderirem a um posicionamento ideológico pela fragmentação dos fatos, pelo enquadramento noticioso, pelo uso capcioso de certas palavras, pelo distracionismo ou pelas emoções, a grande mídia tenta “vencê-las pelo cansaço”. A estratégia em questão é difundir incessantemente uma mesma premissa. Segundo o Manual Goebbels de Comunicação, uma mentira dita mil vezes torna-se verdade.
Nessa lógica, talvez a maior mentira, repetida religiosamente nos noticiários, é a do setor público ineficiente e da iniciativa privada como solução para todos os nossos problemas. É o slogan “Menos Estado, mais mercado”. Como costuma dizer Jessé Souza, trata-se da falácia neoliberal que concebe a política como esfera exclusiva da corrupção e o mercado como reino de todas as virtudes. Assim, nos discursos midiáticos, especuladores, fraudadores fiscais, sonegadores de impostos e exploradores de mão de obra alheia são elevados ao status de “heróis nacionais”. Por outro lado, políticos de esquerda, sobretudo aqueles que colocam em prática algum tipo de medida que beneficie a população pobre, são sumariamente rotulados como corruptos.
Essa falácia neoliberal, como sabemos, é facilmente refutada pelos fatos. A atual tragédia no Rio Grande do Sul demonstra quão nefasta é a política de desmonte do Estado. No entanto, em muitas ocasiões, a mentira dita mil vezes torna-se verdade. Comumente, um motorista de aplicativo já não se considera um “trabalhador”, que necessita de direitos; mas um “empreendedor”, o empresário de si mesmo, para quem “o Estado só atrapalha”. Desse modo, o engodo da meritocracia, utilizado para justificar todos os tipos de desigualdades, é incorporado ao imaginário popular. Como dito anteriormente, uma das funções da ideologia é eliminar a consciência de classe.
E o que falar sobre a classe média coxinha que, convocada pela Rede Globo, vestiu a camisa da CBF, foi às ruas, dançou em torno do Pato Amarelo da Fiesp, e pediu golpe de Estado e um projeto de governo que só interessa à elite econômica? Além disso, a demonização da política permitiu à Operação Lava Jato contribuir para quebrar o Brasil, sob o verniz de “combate à corrupção”.
Por fim, a fabricação em massa de desinformação por parte da grande imprensa não poderia deixar de recorrer às fakes news. Isso mesmo! O leitor não se equivocou. Eu escrevi com todas as letras: f-a-k-e-n-e-w-s.
Remetendo às palavras do filósofo contemporâneo Compadre Washington: Sabe de nada, inocente. Globo, Folha de São Paulo e congêneres já distribuem fake news em larga escala, muito anos antes de o famoso tiozão do zap, via smartphone, compartilhar mentiras para familiares e seus amigos “patriotas”. Exemplos não faltam: o comício das Diretas Já! noticiado como “festa pelo aniversário de São Paulo”, o caso Escola Base, a falsa entrevista dos integrantes do PCC e as supostas degolações de 40 bebês israelenses feitas por militantes do Hamas. Grupos de WhatsApp bolsonaristas são amadores perto dos grandes fabricantes de desinformação.
Portanto, fiquemos atentos. Quando os poderosos grupos de comunicação do país apoiam projetos para regulamentação da internet, não estão preocupados, necessariamente, com os efeitos nefastos das fake news ou algo similar. Pelo contrário. Temem a concorrência. Querem recuperar o monopólio de poder fabricar/divulgar desinformação em larga escala. Simples assim!
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Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em Geografia pela Unicamp, pós-graduando em Jornalismo pela Faculdade Iguaçu e autor de catorze livros, entre eles “A ideologia dos noticiários internacionais“.