Uma vez, há muito tempo, durante uma aula de história do ensino médio, um professor falou: “a história é sempre contada pela versão dos vitoriosos”. Isso me marcou e abriu uma infinidade de possibilidades (e perguntas) em minha mente. Se a versão contada é de quem ganhou (seja uma disputa física, ideológica ou até mesmo narrativa), como seria a história aos olhos de quem perdeu?
Talvez pelo interesse na ideia da pluralidade de versões, optei por fazer jornalismo. Afinal, as notícias são ferramentas da história, pequenos fragmentos que retratam um tempo e lugar que – um dia – estarão muito distantes. E é sobre essa versão que possivelmente quem não presenciou os fatos construa o seu imaginário de como foi passado.
Por isso, é necessária a vigilância sobre o que e como são contados os fatos nos jornais. Não apenas por pura crítica, mas sim para desnudar as intenções das publicações, conectá-las ao passado e ponderar as consequências para o futuro.
Afinal, os jornais contribuem para escrever a história e legitimar uma determinada versão em detrimento de outras. E, em se tratando da imprensa hegemônica, é aquela que geralmente melhor se adequa aos interesses dos vitoriosos e poderosos. Já presenciamos centenas de vezes esse processo e estamos tendo a oportunidade novamente, agora com o conflito entre Israel e Gaza.
Se você abrir o portal do Estadão, da Folha, do Globo, de qualquer afiliada ou de pequenos sites que se alimentam das agências de notícia, perceberá uma semelhança: todas aponta o problema ao terrorismo, despertando o gatilho do medo ou da raiva em muitos leitores.
A proposta desse texto não é analisar o problema entre Israel e os Palestinos, mas apontar a unicidade nas vozes no jornalismo a partir das notícias do conflito na faixa de Gaza.
Confesso que quando vi as primeiras notícias sobre os ataques, a primeira coisa que fiz foi pesquisar a história política da antiga Palestina para relembrar a sequência de fatos da criação de Israel: um estado criado em maio de 1948 após décadas de lobby e de campanhas imigratórias promovidas pelos defensores do sionismo – movimento que defendia a criação de um Estado judeu na Palestina como solução ao antissemitismo na Europa. O que forçou os palestinos a sair do território que hoje é Israel e muitos deles se abrigaram na faixa de Gaza, criada em 1949 para esse fim.
No meio disso, é criado o Hamas. Um movimento islamista palestino, de orientação sunita, que surgiu em 1987 e que se intitula o movimento de resistência palestino contra a existência de Israel.
Alguns jornais como a CNN até trouxeram reportagens especiais comentando o que é a faixa de Gaza e as origens do Hamas, mas, ainda assim, possivelmente poucos leitores ou telespectadores façam a conexão entre a criação de Israel, a expulsão dos Palestinos e os ataques.
Grande parte do noticiário está preocupado em atualizar o número de mortos, transmitir o posicionamento dos líderes mundiais, as negociações de um corredor humanitário e etc. Novamente, essas informações são legítimas e necessárias, contudo, o jornalismo não pode mais se pautar apenas por isso, permanecendo na superficialidade e na fragmentação dos fatos.
É necessário manter a atualização dos acontecimentos, mas também é possível trazer especialistas para analisar a situação a partir de uma visão menos pontual. Sendo possível a inserção de hiperlinks e outros materiais interativos que permitam localizar o leitor historicamente e construir uma perspectiva de compreender o que aquele fato significa.
Mas, poucas empresas permitem que os jornalistas “gastem tempo” com isso e menos ainda que ofereçam outros pontos de vista para além das fontes de sempre. O resultado é a permanência de notícias rasas – facilmente copiáveis por agentes da desinformação – e que pouco exploram a complexidade dos fatos.
Mas, navegando sobre o assunto e insatisfeita com a cobertura rasa da grande mídia, encontrei um texto publicado no Intercept [Maior jornal de Israel não culpa o Hamas pelos ataques] que dá pistas interessantes para entender o que está por trás do conflito para além do “pânico terrorista”. No texto de autoria de Andrew Fishman, é apresentada a visão do jornal Haaretz de Israel sobre o conflito, e – surpreendentemente – o periódico apontou as ações do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, como a causa do problema.
O texto do Haaretz, citado pelo Intercept, pontua as políticas de “limpeza étnica” marcadas por estupros, assassinatos e pilhagens perpetrada por grupos paramilitares terroristas israelenses em 1948, após a declaração do estado de Israel. E, desde então, a contínua tentativa de extermínio do povo palestino, apoiada, segundo o jornal, por Netanyahu.
Fishman explica: “Esse extremismo da parte de Israel é a causa do surto de violência, não o ‘islamismo’, o antissemitismo ou o ódio irracional. Os israelenses minimamente razoáveis veem isso claramente. Porém, qualquer um que tenha a coragem de dizer o óbvio no Brasil será criticado como apologista do terrorismo, apoiador do Hamas ou antissemita”.
Uma visão bastante distinta do que vemos na grande imprensa brasileira, que parece reduzir a complexidade de uma história milenar a uma sentença: foi um ataque terrorista. E continuar a atualização dos fatos segundo a cartilha do bem x mal… quando, na verdade, a questão não é tão simples assim.
Situação que me fez lembrar a fala do meu professor: “a história é sempre contada pelos vitoriosos” e talvez acrescentar, “muitas vezes, o jornalismo também”.
Reportagem originalmente publicada em objETHOS
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Mariane Nava é jornalista e doutoranda no PPGJor/UFSC