Circulam, com intensidade, sobretudo nas redes sociais, considerações de que indivíduos e organizações sociais com ideologias contrárias ao Estado de Israel buscam transformar vítimas em culpados, apoiar o assassinato de civis inocentes e legitimar a manutenção de cerca de duas centenas de pessoas como reféns na Faixa de Gaza.
Trata-se, obviamente, do recente ataque do grupo terrorista Hamas (início de outubro de 2023). Nesse triste episódio, o mundo assistiu estarrecido a toda sorte de atos de barbárie praticados pelos terroristas. É importante registrar que atos de barbárie também são realizados seguidamente, durante décadas, pelos sucessivos governos de Israel. Em suma, verifica-se, com pesar, que o terrorismo é prática frequente dos dois lados do sangrento conflito.
Infelizmente, a história da região registra uma interminável série de ataques, atentados, assassinatos, bombardeios, ocupações, invasões, massacres, opressões, vinganças, violências e todos os demais itens do macabro catálogo de atrocidades que o ser humano é capaz de produzir. Um elemento que merece destaque e profundas reflexões é a forte atmosfera de religiosidade que permeia esse lamentável fluxo de acontecimentos.
Diante desse dramático cenário e da forma como é visto e tratado, alguns questionamentos são particularmente relevantes. Será que a ideologia de alguém pode conduzir ao absurdo apoio do assassinato de inocentes? Em outras palavras, a ideologia é um instrumento para encontrar “justificativas” para os atos mais vis e atentatórios à dignidade da pessoa humana? É possível, nessa linha, cogitar se a ideologia pode funcionar como poderoso mecanismo de distorção da percepção da realidade.
As tentativas, mesmo mais superficiais e ligeiras, de responder a essas indagações, passa necessariamente pelo entendimento do que seja ideologia. Desde logo, afirme-se que o conceito pode ser considerado e utilizado em perspectivas distintas.
Provavelmente, a concepção mais comum da noção de ideologia é a de que consiste em um sistema de crenças políticas e sociais. Assim, o indivíduo desenvolve, influenciado por vários fatores, a maneira como entende o “jogo de poder” e faz escolhas nesse campo. Outra perspectiva muito forte é a da ideologia como uma espécie de disfarce para interesses de classe. Essa vertente aponta para o uso da ideologia como mecanismo de manutenção do status quo e controle socioeconômico. A ideologia também pode ser percebida como um sistema de valores. Nesse rumo, a ideologia escalona ou organiza aquilo, em termos de objetivos e conjunto de circunstâncias, que é considerado mais ou menos importante no convívio social. Merece especial destaque a visão da ideologia como forma de esconder ou distorcer a realidade. Nesse sentido, é tratada como um defeito do pensamento ou, no limite extremo, como uma doença mental.
Ocorre que toda e qualquer pessoa imersa em um contexto socioeconômico possui ideologia. Sustento, entre as várias visões existentes, que a ideologia é uma concepção de mundo emergente da leitura do real e orientadora da tomada de decisões. É, em essência, um escalonamento (hierarquizado) de valores. Não creio, portanto, que a ideologia deve esconder ou distorcer a realidade. Pelo contrário, a realidade é o teste inexorável para a ideologia construída e passível de correções para se ajustar a “vida como ela é”.
Assim, existe uma vertente ideológica que coloca como fundamentais, e no ápice da escala de valores, a dignidade da pessoa humana, os direitos humanos (notadamente a vida e as integridades física e psicológica), o Estado de Direito (notadamente os procedimentos legais de responsabilização pela prática de ilícitos), o respeito à diversidade e à tolerância, a solidariedade, a fraternidade, a paz, a rejeição da violência como forma regular da ação política, o uso de métodos pacíficos para a resolução de conflitos e a empatia com o sofrimento alheio. Essa posição, a partir das premissas postas, repudia com energia os massacres terroristas, independentemente de quem sejam seus autores (indivíduos isolados, organizações da sociedade ou governos estabelecidos).
Identifica-se uma perspectiva ideológica que reconhece mais relevância à luta (contra ocupações territoriais e opressões de várias naturezas), à defesa étnica ou nacionalista e à vingança ou retaliação (em igual ao maior intensidade que a ofensa experimentada). Esse viés ideológico coloca em plano secundário os mais terríveis dramas e sofrimentos humanos, encarados como “efeitos colaterais” indesejáveis ou mesmo “meios inafastáveis” para o alcance de objetivos maiores. Essa posição, a partir das premissas explicitadas, não repudia com energia ou mesmo desconsidera os massacres terroristas inseridos nos contextos de causas como as anteriormente mencionadas.
A tolerância (ou “desvio do olhar”) com o terrorismo, as torturas e as violências de diversas naturezas e intensidades pode ser seletiva por influência de certos interesses. Nesses casos, a ideologia como sistema de crenças não concorre para a mais precisa apreensão da realidade. A ideologia, nessa perspectiva e nesses contextos, funciona para esconder ou distorcer os fatos com o objetivo de que certas posições políticas possam prevalecer.
Assim, a partir de uma linha ideológica que prestigia a centralidade da noção de dignidade da pessoa humana e seu corolário na forma da solução pacífica dos conflitos, os atos terroristas, venham de onde vierem, independentemente de seus atores, devem ser denunciados e repudiados como uma cabal demonstração da falência do projeto de construção de uma humanidade livre, fraterna e solidária.
É preciso afirmar com todas as letras e de forma categórica que são repugnantes e inaceitáveis as barbáries terroristas do grupo Hamas e do governo de Israel. O terrorismo de um grupo extremista, protagonista de cenas de violência extrema, não pode respondido com o terrorismo de um Estado fortemente armado que atinge ferozmente milhares de pessoas, incluídos idosos, crianças, jovens, profissionais de saúde e funcionários de organismos internacionais. Qualquer dimensão ideológica tolerante com as barbáries terroristas, de qualquer origem, estatal ou não, deve ser combatida com firmeza e energia.
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Aldemario Araujo Castro é advogado, mestre em Direito e procurador da Fazenda Nacional