Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A explosão do número de mortes de correspondentes na Guerra Israel-Hamas

Muitos fatos estão surpreendendo a opinião pública na Guerra Israel-Gaza. O primeiro deles foi o próprio início, um ataque surpresa incomum, com várias inovações bélicas e com ações muito cruéis e desumanas contra a população civil. Como o ‘olho por olho, dente por dente’ já era previsto o revide também tem sido feroz. Nessa fase inicial do conflito, o trabalho da imprensa tem se mostrado muito preocupante dado o impressionante número de baixas de jornalistas. Seria descuido, fatalidade ou também uma forma de dificultar o acesso e circulação de informações, que não interessam ser vistas na mídia mundial?

No dia 21 de dezembro passado, o ex-conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília e ex-correspondente da RTP na Guerra do Iraque, Carlos Fino, publicou em seu facebook, a perda de um veterano colega de cobertura de conflitos. No seu post ele escreveu:

“O lendário jornalista reportou há mais de 50 anos – esta noite ele e a sua família ficaram em pedaços.”

“O veterano, professor, media, e o repórter e jornalista altamente respeitado Adel Zaarab foi um dos jornalistas mais proeminentes em Rafah. Anteontem à noite, a sua casa foi atingida por um ‘míssil inteligente’. Nem ele, sua esposa, nem seus 6 filhos e pelo menos 8 netos sobreviveram! Assim, pelo menos 94 jornalistas (sic) foram mortos nos últimos 74 dias…TAMBÉM está acontecendo enquanto todo o mundo político está assistindo silenciosamente!!”

No funeral, envolvido em sua mortalha branca com uns poucos escritos em árabe o corpo de Zaarab jazia com seu envelhecido capacete azul, sobre seu peito, descascado pelas severidades do trabalho, e seu inseparável colete balístico de imprensa sobre as pernas. Os objetos foram depositados sobre ele como aquela última homenagem a um soldado da notícia.

O jornalista Carlos Fino foi o primeiro correspondente a narrar pela Rede de Televisão Portuguesa – RTP – o início dos bombardeios em Bagdá, na Guerra do Iraque. Atualmente mora em Brasília e todo dia publica posts nas redes sociais com fotos e textos ácidos sobre este novo conflito.

Cenário

Segundo noticiou o Comittee to Protect Journalists (CPJ) a guerra Israel-Gaza tem causado graves danos aos jornalistas desde que o Hamas lançou o seu ataque sem precedentes contra Israel. O organismo internacional independente está investigando todos os relatos de jornalistas e trabalhadores da mídia no que diz respeito a mortos, feridos ou desaparecidos na guerra, e as primeiras informações atestam que se trata do período mais mortal para os jornalistas desde que o CPJ começou a coletar dados em 1992.

Em 21 de dezembro de 2023, as investigações preliminares do CPJ comprovaram que pelo menos 68 jornalistas e trabalhadores da mídia estavam entre os mais de 20 mil mortos desde o início da guerra, em 7 de outubro, e dos quais há mais de 19 mil mortes de palestinos em Gaza e na Cisjordânia e 1,2 mil mortes em Israel.

Porta-vozes das Forças de Defesa de Israel (IDF, em inglês) advertiram as agências de notícias internacionais que não podem garantir segurança aos seus jornalistas dentro da Faixa de Gaza. De acordo com a matéria do Comitê para Proteção de Jornalistas, os correspondentes de guerra em Gaza enfrentam mais riscos nas coberturas de operações terrestres dos israelenses, em razão dos ataques aéreos devastadores, aliados também a condições como comunicações interrompidas, escassez de abastecimento e longos cortes de energia.

O organismo cita ainda que tem havido muitas agressões, ameaças, censuras e ataques cibernéticos, até assassinatos de familiares de jornalistas. Por isso, o CPJ está investigando diversos relatos não confirmados de outros colegas mortos, desaparecidos, detidos, feridos ou ameaçados, além da destruição de instalações de órgãos de imprensa e de residências de jornalistas.

O resumo de dados do Comitê para Proteção dos Jornalistas até aqui é o seguinte:

  • 68 jornalistas e trabalhadores da mídia foram confirmados como mortos: 61 palestinos, 4 israelenses e 3 libaneses.
  • 15 jornalistas ficaram feridos.
  • 3 jornalistas foram dados como desaparecidos.
  • E conforme outras informações não confirmadas, 20 jornalistas foram presos.

Comparação

Se forem comparados esses números preliminares com outras guerras os valores são alarmantes. De acordo com o Insi (News Safety Institute), citados pela BBC, “pelo menos 70 pessoas vinculadas à mídia morreram no conflito do Vietnã, entre 1955 e 1975”. O que significa que em pouco mais de dois meses o número de jornalistas mortos foi quase o mesmo daqueles que tombaram no Vietnã em 20 anos de guerra. Com base em levantamentos de associações internacionais de jornalistas, a empresa britânica de comunicação, informa ainda que nos quatro anos de conflitos no Iraque, quase 200 jornalistas foram mortos. A situação é dramática porque aproximadamente 1/3 das baixas fatais daquela guerra já foi alcançado em dois meses e meio.

Na Guerra da Iugoslávia, os repórteres chegaram a ter cabeça a prêmio. O site Balkan Transitional Justice relata que alguns foram mortos quando faziam reportagens na linha da frente, enquanto outros morreram com tiros pelas ruas das suas cidades natais ou assassinados nos seus próprios escritórios. No meio da histeria da agitação nacionalista, os jornalistas eram vistos por alguns como inimigos que reportavam verdades inconvenientes.

Segundo aquela página de internet, cerca de 140 jornalistas e profissionais da comunicação foram mortos durante e após a dissolução da Iugoslávia nos Anos 1990. Os dados finais do conflito apontam, portanto, que o número atual de mortes de jornalistas na Guerra Israel-Iraque está muito próximo da metade daqueles profissionais de imprensa que desapareceram no confronto iugoslavo, cuja duração foi de aproximadamente 10 anos, somando suas várias fases.

Durante muitas décadas a cobertura pela imprensa da II Guerra Mundial foi considerada a mais completa que já houve por
que além de deixar todos informados no planeta sobre o dia-a-dia das batalhas naquela época gerou uma expressiva documentação histórica. Informações do Freedom Forum, organização voltada à defesa da livre expressão nos EUA, revela que 69 jornalistas foram mortos durante a II Guerra Mundial. Faltam assim 2 óbitos para se igualar ao número final de um confronto que levou a vida de 20 milhões de soldados e 40 milhões de civis, conforme dados do arquivo do John Jay College of Criminal Justice, de Nova York.

Conjuntura

A morte de repórteres de guerra sempre é uma cena que incomoda muito a opinião pública porque são civis desarmados, fazendo seu trabalho diário. Jornalistas que morrem ou se ferem em batalhas não são uma ocorrência incomum, mas sempre pode ser um termômetro ou indicador de algum fato relevante daquele ambiente violento.

Pelo número de mortes a brutalidade de ambos os lados do conflito talvez também esteja sendo camuflada pelas próprias condições geográficas atípicas desse teatro de operações, uma área urbana muito concentrada e bem demarcada, altíssima densidade demográfica, ações irregulares de guerrilha e emboscadas, deslocamentos rápidos e refúgio subterrâneo de combatentes [ou terroristas], e também bombardeios aéreos massivos, que muitas vezes não poupam a população civil.

Retratos

O trabalho e perigos enfrentados pelos correspondentes de guerra geram também uma glamorização recorrente no cinema. Somente entre 1983 e 1986, três filmes de sucesso a respeito dessa atividade foram lançados nos Estados Unidos: Salvador, Martírio de um Povo; Sob Fogo Cerrado e Gritos do Silêncio. Em relação às fatalidades da profissão até foi finalizado o clássico Suplício de uma Saudade (1955), estrelado por William Holden e Jennifer Jones. No enredo o correspondente internacional americano, Mark Elliott (Holden), trabalha em Hong Kong e namora uma médica viúva (Jennifer Jones). Quando estoura a Guerra da Coréia, o jornalista parte para acompanhar o conflito e o casal passa a se corresponder por cartas. Ele morre enquanto escreve sua última carta no front depois de um bombardeio.

Mais recentemente, o diretor, produtor e roteirista Stanley Kubrick expôs a crueza do trabalho de um repórter e um fotógrafo de guerra em Nascido para Matar – Full Metal Jacket (1987). Os jornalistas militares trabalhavam para o tradicional jornal Stars and Stripes, especializado em assuntos militares, e testemunham batalhas, emboscadas e ataques à base onde estavam abrigados. A película exibe a natureza caótica e desumana do conflito, os erros cometidos contra civis, dilemas e contradições morais sobre matar ou não por misericórdia, e pensamentos ‘surrealistas’ na luta pela sobrevivência. As diversas mortes surgem de várias formas a cada sequência. É um dos poucos filmes de guerra que trata do suicídio dos soldados. Matthew Modine, Adam Baldwin e Vincent D’Onofrio são os atores principais.

Dramas cinematográficos sobre a cobertura de guerra nem sempre revelam certos episódios do mundo real dos jornalistas. Na dura realidade dos Anos 60, o correspondente brasileiro, José Hamilton Ribeiro, da revista semanal Realidade, quis ver a guerra mais de perto, mas acabou deixando sua perna no Vietnã, depois de pisar numa mina antipessoal. Ele acompanhava uma operação de ‘limpeza’ numa aldeia junto a uma companhia da 1ª Divisão de Cavalaria do exército americano. Ao que parece, foi a única vítima até aqui entre jornalistas brasileiros que estiveram nos fronts pelo mundo e todos esperamos com fervor que os colegas brasileiros ou estrangeiros continuem sempre protegidos.

É difícil antever se o número de baixas de jornalistas irá cair mais adiante. Há uma notória pressão de governos dos Estados Unidos e da Europa para que vidas não sejam mais perdidas, no entanto, não existe uma resposta segura sobre essa questão. Os correspondentes de guerra precisam ficar mais precavidos do que nunca para não serem surpreendidos, pois ordens desmedidas das lideranças, ambas radicais, podem ser dadas a qualquer momento, independentemente das consequências. Isso já aconteceu.

***
Paulo Sérgio Pires é jornalista, publicitário e professor de Comunicação. É pós-graduado lato sensu e mestre em Comunicação pela USP, onde foi pesquisador bolsista. É estudioso de assuntos militares e fez treinamento básico de infantaria na Companhia de Comando do II Exército. Foi repórter dos jornais DCI e Metrô News, e colaborador da Folha de S.Paulo, Agência Folha, Diário do Comércio, e revista Man’s Health (Abril), além de outros veículos especializados.