Quando se é um peso leve em um mundo de pesos pesados, a salvação geralmente está em se esquivar. Os estados latino-americanos entenderam muito bem isso e desde sua independência construíram uma sólida cultura de ‘ficar em cima do muro’. Mas com o aumento das tensões da guerra na Europa, eles foram fortemente incitados a sair de cima do muro e tomar partido, seja pela Rússia, seja pelos Estados Unidos.
O cantor da Costa do Marfim Daouda resumiu de forma picaresca o dilema enfrentado pelos governantes latino-americanos em sua canção de sucesso: “A esposa do meu chefe está apaixonada por mim, o que eu vou fazer?”.
O tradicional chefe do hemisfério ocidental, os Estados Unidos, estava, antes desta crise, cada vez mais preocupado com a caça furtiva, nesse território sul-americano, por parte da China, Rússia e muitos outros. Pequim foi, e continua sendo, a principal dor de cabeça. Como o Subsecretário de Estado encarregado pela pasta, Brian Nichols, lembrou em 11 de março [1]. É verdade que, ao contrário de Moscou, a China desempenha o papel principal em todas as frentes: militar, mas também econômica, financeira, sanitária e tecnológica. A China está vendendo armas para a Venezuela. A China colocou com sucesso seu telefone 5G em vários países da América Latina. Ela trouxe uma dúzia de países para a Rota da Seda e é o segundo, e muitas vezes o primeiro, parceiro comercial de muitos desses países.
A Rússia tem menos cartas na manga. Isso, no entanto, não a impede de se tornar cada vez mais influente na América Latina. Seus principais ativos são energia, saúde e, acima de tudo, no campo militar. Para fazer ouvir a sua voz em uma situação de crise, ela deve mobilizar as suas tropas no sentido mais literal da palavra. Nos últimos anos, abriu a cooperação militar com Cuba, Nicarágua e Venezuela [2]. Em 26 de janeiro de 2022, Serguei Lavrov, seu ministro das Relações Exteriores, declarou perante o parlamento de seu país que a Rússia “fortaleceria sua cooperação estratégica com Cuba, Nicarágua e Venezuela” [3]. Dito isso, energia, fertilizantes e vacinas lhe permitiram abrir outras portas, com diferentes graus de sucesso, na Argentina, Bolívia, Brasil, México e El Salvador.
No entanto, esses apelos não produziram os resultados esperados por Moscou e Washington. Muito rapidamente, o “O que eu vou fazer?” materializou-se num passe cruzado. De ambos os lados, as pressões exercidas pelos destinos manifestamente antagônicos dos EUA e da Rússia foram quase que coletivamente contidas. A proteção militar americana foi modestamente recebida. Washington reavivou as parcerias bilaterais com referência à Aliança Atlântica. O recurso ao TIAR (Tratado Interamericano de Assistência Recíproca), uma estrutura de segurança da OEA (Organização dos Estados Americanos), identificada com o intervencionismo da Guerra Fria, foi abandonado. Em 1993, sob a presidência do Presidente justicialista, Carlos Saúl Menem, a Argentina aderiu às forças da OTAN (SFOR) na Bósnia, e de 1999 a 2007 em Kosovo (KFOR). Em 1998, foi concedida à Argentina o título de aliada privilegiada dos Estados Unidos fora da OTAN, por “Bill” Clinton. O presidente do Partido Popular Espanhol, Pablo Casado, na Espanha, concordou com isso, pedindo em 7 de dezembro de 2021, em Buenos Aires, que a cooperação da OTAN fosse estendida à Argentina, Chile e Uruguai. Alberto Fernández, magistrado principal da Argentina, teve sua orelha (financeira, não militar) puxada por Joe Biden antes de finalmente condenar a Rússia em 2 de março de 2022. Em 2019, o Brasil de Jair Bolsonaro havia se unido ao clube MNNA (Maior aliado não-membro da OTAN) com Donald Trump. Donald Trump havia até considerado propor a candidatura de Brasília à Aliança Atlântica. Este pedido foi bloqueado, em particular pela França, em 20 de março de 2019. O Brasil foi criticado por Washington em fevereiro de 2022 por sua inércia em relação a Vladimir Putin. Ninguém mais fala sobre a aproximação com a OTAN em Brasília. Pelo contrário, discursos denunciando a ameaça nuclear que a França, membro da OTAN, representaria para a Amazônia brasileira, saíram da pasta [4].
A Bolívia, a Colômbia e a Venezuela são um caso especial. A Bolívia tem uma disputa territorial histórica não resolvida com seu vizinho Chile. Assim que La Paz saiu de sua crise interna em 2019/2020, o governo boliviano e seus homólogos russos forjaram laços que combinaram o antiamericanismo com a cooperação energética. A Bolívia se absteve de condenar Moscou. A Colômbia, desestabilizada por um longo conflito interno com ecos equatorianos e venezuelanos, pediu ajuda à OTAN. Em 25 de junho de 2013, considerando-se ameaçada pela Venezuela e seu aliado russo, assinou um acordo de intercâmbio de informações e cooperação com a OTAN. Seu presidente, Juan Manuel Santos, rubricou em Bruxelas em 31 de maio de 2018 um instrumento de cooperação entre a Colômbia e a Aliança Atlântica. A Colômbia também assinou um acordo de defesa com a Alemanha, um país apresentado como facilitador da presença colombiana na OTAN, em 3 de novembro de 2021. Algumas semanas depois, em 8 de dezembro de 2021, a Colômbia aprofundou sua parceria com a OTAN. Estes tratados foram complementados em 10 de março de 2022 com a entrada da Colômbia no Círculo de amigos não-membros da OTAN, dos Estados Unidos.
Entretanto, essa bipolaridade competitiva logo encontrou os seus limites. Já em 24 de fevereiro de 2022, a Colômbia deixou claro que o seu compromisso militar com a Aliança Atlântica era inexistente. A Colômbia não está coberta pela assistência automática concedida pelo artigo 5 do Tratado a qualquer membro sob ataque. Além disso, o guarda-chuva da OTAN, que supostamente deveria impedir uma possível interferência venezuelana, se mostrou cheio de goteiras com a decisão unilateral de Washington de comprar petróleo de Caracas. O Presidente Iván Duque foi à Casa Branca em 10 de março de 2022 para explicar a Joe Biden que ele também poderia vender petróleo para os Estados Unidos, e para lembrá-lo que Nicolas Maduro representava uma ameaça para a Colômbia, assim como para o Hemisfério Ocidental. A Venezuela apoiou a « operação » de Vladimir Putin na Ucrânia, mas sem com isso tomar uma posição nas Nações Unidas, e tornando público, depois de se encontrar com o Ministro das Relações Exteriores russo em Antalya em 10 de março de 2022, que a Venezuela não hospedaria soldados russos em seu solo. Ao concordar em 5 de março em enviar petróleo aos Estados Unidos, um gesto acompanhado em 15 de março da libertação de dois cidadãos norte-americanos detidos em suas prisões, Caracas confirmou de forma reveladora as reservas latino-americanas em relação a qualquer compromisso externo unidirecional.
A América Latina foi realmente pega de surpresa pela guerra russo-ucraniana. Apesar disso, no final, e adotando o dilema de Daouda, em acordo com os reflexos de sua antiga tradição diplomática, seus países multiplicam gestos contidos e declarações à base de oxímoros. Resta saber se ao final ela poderá continuar com um olho no peixe e outro no gato.
Texto publicado originalmente em francês, em 21 de março de 2022, na seção ‘Analyses’, no site do Institut de Relations Internationales et Stratégiques (IRIS – France), Paris/França, com o título original “Invasion de l’Ukraine par la Russie: l’Amérique latine face au dilemme de Daouda”. Disponível em https://www.iris-france.org/165961-invasion-de-lukraine-par-la-russie-lamerique-latine-face-au-dilemme-de-daouda/. Tradução de Jeniffer Aparecida Pereira da Silva e Luzmara Curcino.
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Notas:
[1] Entrevista no “24 horas”, de 11 de março de 2022. Disponível em: /https://www.24horas.cl
[2] A Rússia vendeu 24 aviões de caça Su-30Mk2, 50 helicópteros, sistemas anti-mísseis, tanques, 100.000 espingardas Ak-103.
[3] Em Infobae, 26 de janeiro de 2022.
[4] Como noticiado pela revista Carta Capital, de 11 de março de 2022, acerca do tuíte do General Eduardo Villas Bôas. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/no-twitter-villas-boas-insinua-que-militares-esperam-por-macron-na-amazonia/
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos