Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A neblina da desinformação e a guerra da Ucrânia – II

(Foto: Gabinete do Presidente da Ucrânia via EBC)

Meses depois do começo da guerra na Ucrânia, fala-se muito a respeito desinformação propagada pelo Kremlin. Na mídia, a Rússia, e mais especificamente Vladimir Putin, são tratados como vilões; a Ucrânia, como vítima. Já a OTAN e mais especificamente os EUA aparecem como os “mocinhos” que vão salvar a Ucrânia. É sobre os diferentes lados da desinformação e as disputas de narrativas que o Observatório da Imprensa conversou com o professor e pesquisador Bernardo Wahl, docente de Segurança Internacional na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e mestre em Relações Internacionais. Confira a entrevista completa:

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Nicole De March – Como se defender na neblina de desinformação sobre a guerra na Ucrânia?

Bernardo Wahl – É um problema difícil de ser resolvido. A melhor forma de lidar com a desinformação é através da educação, mas como o ecossistema de informação é amplo e complexo, isso favorece muito a disseminação da desinformação. Muitas vezes, as pessoas recebem alguma coisa no WhatsApp ou elas veem nas redes sociais e acabam acreditando naquilo, ao invés de procurar numa fonte que seja mais segura. Porém as próprias fontes mais seguras, que obviamente vão noticiar os fatos, podem estar moldadas de alguma forma. A CNN, por exemplo, que é uma fonte supostamente segura, tem uma visão dos Estados Unidos, o veículo de informação não vai apresentar uma visão russa alternativa em relação à guerra. Isso vai moldando a mentalidade das pessoas. Essa questão é super desafiadora e inclusive ameaça à democracia, já que a democracia é baseada em fatos e em verdades, mas a desinformação acaba minando tudo isso e criando caos, em benefício de algumas pessoas.

NDM – Qual seria a responsabilidade da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) na guerra, uma vez que fica fornecendo armas para a Ucrânia?

BW – A meu ver, essa questão de fornecer armamento para a Ucrânia tem relação com uma espécie de guerra por procuração da OTAN contra a Rússia, usando a Ucrânia. A ideia da OTAN e dos Estados Unidos é fazer com que a Rússia sangre o máximo possível nesse conflito, assim desgastando a Rússia até seu limite. Desde o início dos anos 2000, quando o Vladimir Putin chegou ao poder, um dos objetivos do presidente era recolocar a Rússia no patamar de uma potência global, e ele estava até conseguindo isso, porém é política dos Estados Unidos -muitas vezes não declarada- evitar o surgimento de países hegemônicos na Eurásia. A Rússia invadindo a Ucrânia busca reconquistar suas áreas de influência e a OTAN quer evitar que isso aconteça. 

A OTAN está encorajando a resistência ucraniana, ela está armando, está fornecendo inteligência. Generais russos foram mortos pela Ucrânia com inteligência dos Estados Unidos. Além disso, o principal navio da frota russa no Mar Negro, o Moskva foi afundado também com o auxílio da inteligência norte-americana. Então, a OTAN e os Estados Unidos, eles são parte deste conflito, eles só não fazem um combate direto. Eu acho que interessa para a Rússia, para a OTAN e para os Estados Unidos que as coisas permaneçam como estão. Uma guerra direta entre Rússia e OTAN seria muito problemático: então a OTAN não tem envolvimento direto e a Rússia alega que parte do conflito é devido ao envio de armamentos e o apoio da organização à Ucrânia. Além disso, a Rússia também não atacou nenhum país da OTAN; o que ela está fazendo é atacar o fornecimento de armas já em território ucraniano. 

NDM – O que há por trás dessa visão dos Estados Unidos em relação à Rússia?

BW – Isso acaba moldando um ambiente desfavorável à Rússia, uma espécie de russofobia, que domina o ambiente da imprensa; com isso, as pessoas não têm uma visão mais clara sobre o país. Isso costuma ficar limitado aos especialistas e ao ambiente acadêmico, o que acaba fazendo com que as pessoas pensem de um modo muito específico sobre a Rússia.  É importante que a gente tenha mais diversidade de informações, mas o ambiente da Imprensa está muito dominado por essa visão contrária à Rússia, que certamente é desinformação.

Apenas para reforçar, a Rússia e o Putin não são ‘‘bonzinhos’’; há muitos problemas, mas o ambiente de informações está muito moldado de acordo com uma visão específica. As notícias que você vê, por exemplo: ‘‘A inteligência americana disse isso…’’, ‘‘os militares norte-americanos disseram isso…’’, ‘‘o Pentágono disse aquilo…’’, ou seja, é tudo moldado de acordo com a visão norte-americana. Fica difícil ter informações mais equilibradas e mais ponderadas. 

NDM – Qual é o tipo de desinformação propagada pela Ucrânia e a narrativa ocidental e qual é a atuação do governo ucraniano e ocidental nisso? 

BW – Existe bastante desinformação na narrativa ucraniana, como não poderia deixar de ser. A Ucrânia é o país invadido, é a vítima, é o mais fraco, então as pessoas tendem a se solidarizar com a Ucrânia, muitas vezes entendendo a narrativa ucraniana como se fosse a verdade, e não um discurso preparado para beneficiar a própria Ucrânia. A versão dos fatos a partir das lentes ucranianas tende a exagerar os acontecimentos para lançar uma culpa maior no agressor russo. Por exemplo, o massacre na cidade de Bucha (cidade próxima a Kiev), ao qual o presidente ucraniano se referiu como genocídio. De fato, pode ter sido um acontecimento terrível, mas será que chegou mesmo ao nível de genocídio? Eu acho que não. É um exemplo de exagero na narrativa ucraniana para moldar corações e mentes favoravelmente a Kiev. A narrativa ocidental desenvolve uma imagem da Rússia como sendo o “vilão”, como se a Rússia não tivesse interesses legítimos de segurança, sendo o Ocidente o “mocinho”, moralmente superior, como se o Ocidente já não tivesse sido responsável por diversas situações problemáticas nas relações internacionais. O Ocidente libera informações de inteligência para a imprensa, de forma a moldar o ambiente de informações favoravelmente à Ucrânia.

NDM – Como você diria que está sendo a visão do brasileiro frente ao conflito?

BW – Quando a guerra começou, chamou a atenção de certamente grande parte dos brasileiros, pela sua novidade, cobertura da imprensa (o evento dominou o ciclo de notícias) e difusão pelas redes sociais (alguns chamaram o conflito de “guerra TikTok”). As pessoas se preocuparam com o impacto da guerra em variadas dimensões: a militar (poderia haver uma Terceira Guerra Mundial? Poderia haver uma guerra nuclear?), a econômica (aumento do preço das commodities e de energia, o que impacta o preço dos combustíveis e alimentos, mexendo no bolso dos brasileiros), qual era o posicionamento do governo brasileiro diante do acontecimento etc. Porém, com o passar do tempo, a guerra deixou de ser novidade e novas notícias passaram a ocupar a imprensa (como, por exemplo, as eleições de 2022 no Brasil). Assim, no começo, é provável que o brasileiro tenha se interessado mais. Porém, com o passar do tempo, o interesse tendeu a diminuir.

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Nicole De March é mestre e doutora em Física (UFRGS). Pós-doutoranda do LABTTS (DPCT-IG/Unicamp) e membro do Grupo de Estudos de Desinformação em Redes Sociais (EDReS).