Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Crise russo-ucraniana: um terremoto geopolítico europeu revelador de subalternidades latino-americanas

(Foto: IRIS: Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas)

As repercussões na América Latina da ação militar russa na Ucrânia revelaram as fraturas de uma integração regional que é mais virtual do que duradoura. As bombas russas desnudaram o cotidiano de diferenças instáveis dessa região. Cada governo reagiu de acordo com os seus próprios interesses particulares. Não houve consulta coletiva e isso pela ausência de pontos de consenso regional. A OEA (Organização dos Estados Americanos) está em funcionamento, em Washington. A CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), que não conta mais com a participação do Brasil há dois anos, não é mais um universal regional. As outras estruturas intergovernamentais têm alcance geográfico restrito, impedindo qualquer definição comum.

Estas reações fragmentadas e divergentes interpretaram, no entanto, com diferentes graus de brilhantismo, uma mesma partitura. Todos os países, cada um à sua maneira, revelaram uma subalternidade internacional idêntica. Como outras periferias do mundo, a América Latina continua sendo um espaço de soberania limitada, primeiro pelas potências coloniais europeias, depois no século XX pelos Estados Unidos, e mais recentemente, de forma hesitante, por suseranias concorrentes, chinesas ou russas.

Vários líderes latino-americanos, por ocasião desta crise, renovaram seu tradicional alinhamento com uma potência tutelar externa. A Colômbia, que há muito tempo vinha se orientando pela “estrela polar” norte-americana [1], e que é membro associado da Aliança Atlântica, no entanto, deu um passo cauteloso para trás. Seu Ministro da Defesa, Diego Molano, declarou publicamente em 24 de fevereiro que Bogotá não enviaria tropas para a Ucrânia. Cuba, Nicarágua e Venezuela, o núcleo duro que sobreviveu à desintegração da ALBA (Aliança Bolivariana dos Povos de Nossa América), em vez disso, confirmaram seu vínculo preferencial com a Rússia. Sujeitos às sanções dos EUA, a Rússia lhes oferece um escudo militar de proteção. No entanto, eles mostraram seu apoio a Moscou de uma forma mais tímida, menos peremptória, provavelmente para não atrair a ira norte-americana, que a Rússia, em tempos de paz, é capaz de inibir.

Depois há os oportunistas, que pensam que podem se beneficiar, tanto hoje como ontem, apesar da crise, de uma aproximação com a Rússia. A Bolívia fez esta escolha há alguns meses, de modo a se desvencilhar do cabresto norte-americano. Em meio à crise russo-ucraniana, assinou importantes acordos energéticos com a Rússia em 22 de fevereiro. Sem surpresas, em 24 de fevereiro, seu governo “apelou às partes em conflito para que se engajassem em mecanismos diplomáticos de desanuviamento […]”. O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, fez o mesmo cálculo. Ele foi a Moscou em 15 de fevereiro com líderes empresariais. Ele se declarou convencido das boas intenções de Vladimir Putin, e acrescentou: “temos negócios com eles, nossa agroindústria precisa de seus fertilizantes”. Bolsonaro manteve um silêncio impressionante, na quinta-feira, 24 de fevereiro, quando veio a público a agressão militar iniciada pela Rússia.

Há também os “nasseristas”, aqueles que se encontram em uma situação internacional de “guerra de chefes”, período que lhes permite jogar em todos os tabuleiros, para o maior benefício de suas economias. Aqueles da Argentina ao México, passando pelo Peru e Uruguai, estão pedindo o diálogo e a negociação, de forma totalmente deslocada, tendo em vista a brutal militarização da situação. A Argentina espera que sua posição tardia “a favor dos princípios consagrados na Carta das Nações Unidas” conduza a uma melhor liquidação de sua dívida. Seu presidente, Alberto Fernández, parou em Moscou a caminho de Pequim, no dia 3 de fevereiro, para pedir o apoio da Rússia. O México vê nesta crise a possibilidade de seus suseranos concorrerem por seu apoio. Refletindo esta escolha, o México sinalizou “sua confiança em uma futura normalização através do diálogo, […] sem confrontos bélicos”.

Finalmente, há os fatalistas. Alguns se refugiam no trabalho humanitário, multiplicando as declarações sobre seus cidadãos retidos na Ucrânia, sem terem a possibilidade de repatriá-los, como admite o Itamaraty, Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Outros, muitas vezes os mesmos, avaliam as consequências financeiras dos potes quebrados e do leite derramado. Os mais afastados das mesas decisórias diplomáticas têm sido os mais ativos nessa área, tal como a República Dominicana, cujo presidente, Luis Abinader, convocou em 24 de fevereiro, às 14 horas, hora local, uma reunião excepcional de seu gabinete dedicada a essa questão.

Estas posições evasivas, em sua diversidade, sublinharam brutalmente a evidência da inexistência internacional dos 19 países, que supostamente compõem o que convencionalmente é referido como um coletivo, a América Latina. A Ucrânia, como já foi dito, pode estar em uma situação de “soberania limitada”. Mas não é o único neste caso. O mesmo se dá na Europa, sem dúvida, na África, certamente, e obviamente na América Latina.

A Rússia ofereceu, em 22 de outubro de 2021, por ocasião da visita a Moscou do Ministro das Relações Exteriores boliviano, Rogelio Mayta, seu apoio paradoxal aos latino-americanos que buscar se afastar das interferências norte-americanas e das sanções unilaterais. Ao apoiar a Bolívia, que tem uma longa disputa territorial com o Chile, a Rússia talvez tenha encorajado a invenção de um hipotético Donbass sul-americano, o que é uma mensagem incomum em uma região sem grandes disputas territoriais. Uma mensagem que foi bem interpretada, não em Santiago ou em La Paz, mas pelo ex-presidente dos Estados Unidos, e próximo candidato à Casa Branca, Donald Trump. Em uma entrevista de rádio, ele disse que “nós poderíamos fazer o mesmo (como os russos) em nossa fronteira sul”.

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Notas

Texto publicado originalmente em francês, em 28 de fevereiro de 2022, na seção ‘Analyses’, no site IRIS Institut de Relations Internacionales et Stratégiques, Paris/França, com o título original “Crise russo-ukrainienne: un séisme géopolitique européen révélateur de subalternités latino-américaines”. Disponível em: https://www.iris-france.org/165202-crise-russo-ukrainienne-un-seisme-geopolitique-europeen-revelateur-de-subalternites-latino-americaines/. Tradução de Adriana Cícera Amaral Fancio e Luzmara Curcino.

[1] Doutrina também conhecida pela fórmula latina “respice polum”, que recomenda “olhe para o norte”, e que foi assim alcunhada pelo presidente colombiano Marco Fidel Suárez (1918-1922), e promovida desde então pela diplomacia do país, baseada no alinhamento incondicional às diretrizes dos EUA em matéria de política externa.

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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LIRE (Laboratório de Estudos da Leitura) e LABOR (Laboratório de Estudos do Discurso) ambos com sede na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).