Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Guerra de propaganda, desinformação, narrativas e a mídia brasileira

A cobertura jornalística da guerra entre Israel e o Hamas tem trazido para o teatro de operações elementos inéditos de narrativas contrapostas, desinformação e propaganda. Neste cenário bélico há novidades que podem influir radicalmente no resultado final da comunicação como a tecnologia de inteligência, as mídias sociais e o marketing de influência. Em comparação com outros conflitos militares as novas particularidades talvez possam deixar a opinião pública com menos confiança nas informações divulgadas.

A guerra de propaganda tem usado fundamentalmente como armas o jornal, televisão, rádio, folheto, cartaz, revista, cinema, discurso em evento e até alto-falante, show musical, história em quadrinhos e outros meios de comunicação incomuns. Nesta nova ‘Era Midiática’, além disso, surgem novidades complicantes. Um dos contrassensos é que os informes sobre os acontecimentos nunca ficaram tão próximos da opinião pública com as novas tecnologias eletrônicas e digitais. No entanto, a sensação para muitos receptores é que a verdade irrestrita e absoluta parece ter ficado bem mais distante.

Aqui aquele clássico aforismo do jornalista Phillip Knigthtley que “na guerra a primeira vítima é a verdade” tem se confirmado também. Em seu clássico livro A Primeira Vítima, publicado em 1978, o escritor já havia analisado o correspondente de guerra como um herói, propagandista, e fabricante de mitos desde a primeira Guerra da Criméia (1853 a 1856) – quando oficialmente começou esta especialidade no jornalismo – até o conflito do Vietnã, que tanto foi marcado pela cobertura televisiva. Possivelmente também tenha sido a última edição de uma guerra com ampla liberdade de imprensa.

Em se tratando de propaganda de guerra, militares afirmam que por intermédio dela é possível disseminar falsas notícias, promover desinformação para desacreditar o inimigo, conquistar a opinião pública, melhorar o estado de ânimo da tropa (o moral) assim como piorar o do oponente, apenas empregando uma narrativa persuasiva ou convincente.

Não se trata de um instrumento novo e muitos líderes políticos e militares souberam usá-la com destreza. O general Napoleão Bonaparte foi um dos que tiraram proveito da técnica. A história conta que para se autopromover usava pinturas em quadros com ele em batalhas, produzia peças de teatro encenando os feitos e publicava seus próprios jornais. A mentira também fazia parte do métier. Na Campanha do Egito o general perdeu a guerra, mas voltou para a França se gabando que havia vencido bravamente o inimigo.

Novidades

Na guerra Israel vs. Hamas ou Hamas vs. Israel [para ser isonômico ou neutro], têm surgido novidades. As mídias sociais são um novo espaço de opinião, de informação e naturalmente de desinformação. Cada player as usa conforme seu próprio interesse. Há publicações sérias e com procedência, e existem aquelas com má fé, apenas com o propósito de confundir ou aliciar maliciosamente sua audiência para seu próprio proveito.

Como ocorreu nas últimas campanhas políticas é muito provável que existam especialistas apenas para produzir posts a fim de tumultuar, confundir ou apresentar uma versão verossímil. Um bom número desses ‘comunicadores’ deve ser ligado ao segmento de inteligência. Da mesma forma há também militantes e ativistas passionais que produzem materiais propagandísticos só porque acreditam devotadamente neste ou naquele protagonista ou são parte do problema.

Outro ponto a considerar na guerra midiática são os Influenciadores digitais. Eles tratam constantemente do assunto nos canais do Youtube ou no Instagram e às vezes contam com uma legião de seguidores. Existe inúmeros deles especializados em geopolítica, relações internacionais, tecnologia bélica e ciências militares. Alguns efetivamente possuem autoridade em suas pautas, outros terminantemente não. O ponto crítico é que parte desses influencers, mesmo sendo apedeutas, consegue reunir uma leva expressiva de adeptos de sua causa.

No cenário dessa guerra de narrativas há também organizações que fazem um trabalho eficiente de relações públicas e relações com a mídia. Naturalmente só divulgam o que é conveniente para seu lado. Às vezes trabalham com versões verdadeiras, meias verdades e possivelmente inverdades. As ongs estão também em canais no Youtube. O jornalismo, portanto, precisa ficar atento sempre e refletir no que o conteúdo deve ajudar ou prejudicar o divulgador da notícia, se o assunto pode ser falso ou não, e quem ganha ou perde com a informação.

Não dito

Numa guerra não informar ou omitir um fato negativo é um procedimento que tem alto valor estratégico. Não se sabe a razão, mas pouco se publicou sobre o ataque cibernético à estrutura de internet de Israel. Até youtubers brasileiros que tratam da cultura e modus vivendi israelense foram alvos com inserção de mensagens de baixo calão nos seus canais. Como sublinhou o jurista argentino Luiz Warat, “há muito mais no não dito do que no dito”. E complementando o pensamento, o polêmico ex-policial, ex-deputado e jornalista, Protógenes Queirós, alertou: “antes de enxergar a notícia, a imprensa deve enxergar o peso da informação e a consequência dessa divulgação para a sociedade e o país”.

Do ponto de vista humanitário, o grupo Hamas fez ações impensáveis numa guerra convencional. Para sua propaganda gravou vídeos e divulgou pela internet as operações de morticínio contra civis israelenses (árabes e judeus), atacando indiscriminadamente pessoas ao seu redor. Para militares especialistas em guerra irregular, o objetivo de veicular aquelas cenas horríveis era mesmo o de chocar a opinião pública, provocar pavor, causar extrema insegurança, que são algumas das finalidades básicas das ações de terrorismo. Enfim, aterrorizar.

O grupo conseguiu atingir seu objetivo imediato, mas no campo diplomático e do direito internacional o ato deplorável será lembrado nos tribunais internacionais quando a guerra acabar. No caso daquela polêmica execução de bebês, na visão de repórteres experimentados a ocorrência era tão bestial e nonsense, que as imagens exigiam ser examinadas com muito mais cuidado antes da publicação da verdade, mas não foi possível. Por parte do inimigo havia sempre a alegação da montagem e manipulação. Constatou-se depois que o conteúdo apresentado de fato era mesmo verdadeiro.

Imagens

Dentro do novo contexto, as Forças de Defesa de Israel aprenderam que também poderiam utilizar vídeos a seu favor e por isso estão realizando coletivas de imprensa fechadas para exibir imagens com as ações da brutalidade do inimigo. Os eventos off-the-record dirigidos aos jornalistas têm sido organizados tanto dentro de Israel como em suas embaixadas ao redor do planeta. Uma condição imprescindível é que as imagens não possam ser divulgadas pela imprensa por razões éticas, respeito e pelo caráter mórbido e repulsivo. Um jovem correspondente brasileiro, por sinal, fez uma live dentro de seu carro, contando o conteúdo desumano daquelas cenas exibidas e sua desolação.

Nesta guerra de informação-desinformação há adventos temerários como a tecnologia da inteligência artificial e softwares de processamento de imagens fotográficas. Com os últimos programas de computação a fotomontagem tradicional se tornou pré-histórica. Praticamente tudo hoje é possível ser recriado imageticamente usando recursos como softwares de foto. Na área de vídeo o avanço é mais assustador ainda. Quando se faz a edição de imagens é possível gerar novo conteúdo realista com a criação de vídeos deepfake, pelos quais o rosto de uma pessoa é sobreposto ao corpo de outra, dando vida desta maneira a uma nova e perfeita ‘criatura’.

O som também ficou bastante manipulável com a alternativa de literalmente colocar palavras na boca de uma pessoa, que ela nunca disse ou diria. Portanto, conclui-se que neste momento seja extremamente necessário desconfiar de fotos e vídeos por mais que pareçam verdadeiros. Uma imagem deixou de valer mais que mil palavras. Mas há também atualmente tecnologias avançadas para identificar a manipulação. Por consequência, a imprensa tradicional nunca foi tão necessária nesta guerra, com o aval de seu testemunho, técnica, credibilidade, história, ética, responsabilidade, neutralidade e confiança.

Instantaneidade

Hoje em dia, um dos grandes desafios para os soldados da notícia que estão em Israel é a predominância da informação em tempo real ou ao vivo. Não existe muito tempo para refletir e checar, apenas para execução. Em seu livro “A Culpa é da Imprensa”, o ensaísta Ives Mamou revelou que há assessores de imprensa que enviavam seus press releases engajados perto do fechamento da edição para não haver tempo de verificação e ao mesmo tempo o editor não perder a oportunidade de aproveitamento da publicação e ser furado pelo concorrente. O ideal, portanto, seria um período maior na fase de depuração da notícia a fim de pensar e checar as informações, diante de tantos entraves, riscos e possibilidades de ser enganado.

A cobertura desta guerra pelos correspondentes brasileiros de televisão ao que tudo indica tem sido bem desenvolvida, apesar de alguns deslizes naturais. De início, como seria normal, houve certa confusão e desordenamento até pela surpresa do fato, mas o trabalho foi se desenvolvendo melhor ao longo do tempo.

Em termos de produção televisiva há falhas, como a repetição de diversas ‘tomadas’ ou cenas nas reportagens e programas que sugerem que a gravação da própria emissora ou compra de imagens de agências de notícias tem sido insuficiente. Eticamente, incomodam aqueles correspondentes de TV na Europa gravando matérias diretamente de Londres ou Paris, porém com adição de imagens do conflito e com seu stand-up ou passagem, como se sugestionasse que o jornalista estava em solo israelense.

Tudo leva a crer que alguns correspondentes brasileiros ou stringers possam ter sidos contratados em Israel de última hora. Todos têm mostrado ser bem preparados profissionalmente e demonstram conhecimento militar, histórico e de geopolítica. Uma jornalista de uma emissora de notícias fez mestrado na UNB em relações internacionais, foi setorista no Palácio do Planalto e na Casa Branca, e colabora com O Globo. Outro profissional de destaque que está em campo possui densa formação acadêmica em teoria politica, economia e comunicação na Inglaterra, foi da BBC e também ocupa simultaneamente alta posição executiva em seu canal de notícias.

Há ainda aqueles medalhões que já estão calejados na cobertura de guerras pelo mundo todo e também os que são estreantes, mas exibem coragem e empenho para informar e muitos anos na reportagem. No próximo ‘ato’ a dúvida é saber o quanto os correspondentes poderão acompanhar as tropas de perto ou só ficarão narrando os acontecimentos apenas de longe, municiados por declarações oficiais ou informações de segunda mão das mídias sociais ligadas ao Hamas ou ao governo israelense. Será difícil algum jornalista ter aquela confiança e cooperação como teve o correspondente e depois âncora da Rede CBS, Walter Cronkite, que no Dia D saltou de paraquedas na Normandia junto com uma divisão americana aerotransportada com milhares de soldados.

Profissionalismo

Indicando comprometimento com a cobertura, algumas emissoras de TV do Brasil têm empregado até dois correspondentes de guerra simultaneamente. Isso é muito positivo, especialmente se for levado em conta o que o veterano jornalista enviado ao Vietnã, José Hamilton Ribeiro, justificava em sua época: “Não queríamos comer numa mão só”. Ele mencionava naquele caso a necessidade de seu veículo, a revista Realidade, ter acesso direto a várias fontes no campo de batalha e não apenas ao material das agências de notícias internacionais.

Apesar de empregada no Vietnã e outros conflitos como a I Guerra Mundial, Afeganistão e Síria, a guerra em rede de túneis vai ser um grande desafio jornalístico desta vez. Ela será muito turva e bem mais perigosa que nos conhecidos campos de batalhas. Talvez, pelo ambiente propício fique mais fácil esconder o que não se deseja que se torne público e se enterre as verdades ali mesmo.

Na faixa de Gaza as informações concretas daquele lado vinham sendo obtidas principalmente por fontes diretas, como árabes brasileiros, que ali residem ou visitavam. Quase sempre enviavam depoimentos gravados ou vídeos por telefone celular, ou seja, por mais um novo componente midiático que tem mudado a atmosfera no teatro de operações. Com o avanço de tropas de Israel e a retirada dos árabes brasileiros de Gaza as fontes primárias serão outras e tudo pode mudar. No entanto, seguramente as reclamações da cobertura da guerra continuarão de todas as direções. Os vários lados do interesse criticarão quando a verdade não for a seu favor, como também fazem os apaixonados torcedores de futebol.

No caso dos analistas e comentaristas de assuntos internacionais fixados no Brasil, se encontram alguns ex-correspondentes de guerra, inclusive com passagens por conflitos em Israel, Líbano, Iraque e Ucrânia. Por outro lado, alguns apresentadores revelam que não têm o menor conhecimento sobre assuntos militares. Confundem um tanque, ou melhor, carro de combate, como preferem os militares brasileiros, com um blindado de infantaria, e admitem humildemente no ar que não sabem sobre o tema. Não entendem a diferença entre míssil e foguete, e não distinguem um pelotão de um batalhão. Não demonstram a menor noção, onde se desenrolam as operações, do papel da infantaria, cavalaria, artilharia, material bélico, intendência e engenharia de combate. No entanto, todos querem palpitar.

Militares brasileiros

]Neste espaço midiático, é de se estranhar a pouca participação de militares brasileiros da ativa ou reserva, como especialistas nos comentários ou análises da guerra, o que seria imprescindível para uma boa cobertura. A conclusão mais natural é que seja rancor, herança do período militar autoritário. De todo modo há alguns nomes de relevo que estão dando suporte ao noticiário com autoridade como o capitão de mar e guerra da reserva, Salvador Ghelfi Raza, que atualmente é professor na National Defense University, em Washington, e é um grande especialista em estudos estratégicos, inclusive com reconhecimento internacional. Às vezes faz comentários para canais de notícias.

Alguns militares brasileiros têm conseguido mais espaço na prática em podcasts no Youtube do que na mídia tradicional, como, por exemplo, o coronel de infantaria da reserva, Alessandro Visagro. O oficial, entre outras várias qualificações, é autor dos livros Guerra Irregular: terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história e A Guerra na Era da Informação. Foi comandante do 1º Batalhão de Forças Especiais, a unidade mais operacional e exigente do Exército Brasileiro. Os operadores desse tipo de tropa de elite são experts no emprego do engano, alarmismo, disseminação de boatos e outras ações de guerra psicológica e de propaganda.

Influenciador digital, com mais de 400 mil inscritos em seu canal, Arte da Guerra, no Youtube, o capitão de fragata (fuzileiro naval) da reserva, Robinson Farinazzo, é aviador e um grande especialista em tecnologia aeronáutica. Trata com desenvoltura e profundidade tanto questões militares e estratégicas como geopolíticas. É autor do livro As leis de sucesso dos pilotos de guerra. Ele tem se destacado como youtuber, comentando e dando frequentes instruções a sua audiência em seu canal. De vez em quando reclama que sofre censura da plataforma. Ocasionalmente concede entrevistas ou faz comentários em programas de emissoras de televisão de porte menor. É importante complementar que diplomatas de carreira também têm sido pouco procurados como fontes ou analistas. A exceção é o embaixador Rubens Barbosa.

No caso dos temas fundamentalmente geopolíticos e diplomáticos do conflito, os programas jornalísticos da TV proporcionam um contínuo revezamento de fontes e analistas em ciência política e relações internacionais, que invariavelmente demonstram notoriedade, ótimos conhecimentos e segurança sobre os assuntos tratados. O único inconveniente jornalístico que se constata é que vários deles são somente de origem judaica e muito poucos com ascendência árabe. A neutralidade e imparcialidade podem por consequência ficar comprometidas.
Paulo Sérgio Pires é jornalista, publicitário e professor de Comunicação. É pós-graduado lato sensu e mestre em Comunicação pela USP, onde foi pesquisador bolsista. É estudioso de assuntos militares e fez treinamento básico de infantaria na Companhia de Comando do II Exército.