Jornalistas se encontram constantemente em um campo minado, de terreno duvidoso, onde as evidências são escassas, mas de fartas investidas para enganar, induzir a erro e, no limite, corromper a opinião pública. A névoa toma conta e impede de ver os obstáculos com nitidez. Stephen Ward, eticista de mídia reconhecido internacionalmente, utiliza a metáfora da névoa para descrever as dificuldades, tensões e os embates que podem separar o jornalismo da realidade dos fatos.
Desde que a Rússia decidiu iniciar uma guerra contra a Ucrânia, no dia 24 de fevereiro, jornalistas e meios de comunicação se deparam com inimigos reais e implacáveis: a desinformação e a intensa disputa pela hegemonia ideológica nas plataformas sociais. E não há novidade nisso. Parte das informações sobre qualquer evento de interesse público são distribuídos em feeds e estão à mercê de comentários distorcidos e/ou mentirosos em redes sociais.
Passados mais de 10 dias desse contexto de guerra, sabemos que estamos vendo apenas uma pequena fração da zona de conflito que os jornalistas vivem diariamente. Independentemente do cenário, os jornalistas vivem permanentemente num campo de guerra. O vídeo do “fantasma de Kiev” é a prova de que parte importante do trabalho jornalístico vem sendo desempenhada, mais uma vez, pelas agências de checagem de fatos. A exemplo disso, a Lupa verificou que o vídeo de um piloto ucraniano abatendo avião russo trata-se de um jogo de computador, portanto, é falso. Na era das Fake News, que tem nas plataformas digitais seu terreno mais fértil, “tudo que é sólido desmancha no ar”, como dizia o filósofo alemão.
No momento atual a neblina está bem espessa, em vista disso, é recomendável cautela com previsões e análises. Valores éticos e responsabilidade profissional servem de bússola para uma cobertura que exige atualizações minuto a minuto.
Por conta da guerra de informação e de produção social de sentidos que se estabelece em torno da invasão russa à Ucrânia, com influência direta em emoções e opiniões, empresas de redes sociais são pressionadas a escolher um lado neste front e tomar medidas para impedir a propaganda dos meios estatais russos. No Twiiter, Thierry Breton, comissário europeu para o mercado interno, cobrou um posicionamento das big techs. A partir disso, Google, Meta, TikTok, Youtube, Twitter, atuam para ajustar algoritmos e limitar a disseminação de discussões e propagação de conteúdo do governo russo nas plataformas em todo o mundo. Netflix, a gigante do streaming, decidiu pausar todas as produções russas enquanto avalia os impactos dessa invasão. A questão de fundo é estabelecer qual o limite dessas medidas e até onde pode se configurar uma censura política a pretexto de se combater “notícias falsas”?
Por exemplo, o Conselho Europeu proibiu, desde o dia 2 de março, todas as atividades dos canais russos Russian Today (RT) e Sputnik News. Tal decisão vale para o território da União Europeia, sob acusação de que os veículos de espalham desinformação. “A RT é um canal internacional de televisão, e a Sputnik, uma agência de notícias. Os dois veículos são estatais, ligados ao governo russo” (Fonte: https://bityli.com/VycPH). Na vida real, isto significa censura sem meias palavras, porque as agências estadunidenses e britânicas continuam cobrindo o conflito sob a ótica dos EUA e da NATO.
Outro personagem do conflito internacional, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, diariamente distribui selfies nas redes sociais para mostrar que se encontra em Kiev. A rede social também é uma ferramenta para o desempenho jornalístico, auxiliar para alcançar pessoas e levar informação da Ucrânia-Rússia para o mundo. Com uma torre de TV bombardeada, os ucranianos ainda têm a opção de se informar por estes canais.
À exemplo disso, no Twitter, Yan Boechat trazia relatos do cotidiano da guerra em solo ucraniano; e do repórter Eduardo Gayer que, relatou, inclusive, a sua fuga para a Polônia, agora já no Brasil. São eventos em tempo real, acessos difíceis e perigosos, relatos de testemunhas em primeira mão.
Apesar disso, a maioria dos jornalistas (independentes ou vinculados a uma organização jornalística) se limitam a reportar de locais menos críticos, se é que isso é possível num contexto de guerra. Alguns se posicionam nas regiões de fronteira com a Ucrânia, outros estão em Kharkiv e na região da capital Kiev. Por conta disso, se veem entre dois extremos: os fatos que realmente conseguem apurar pessoalmente e aqueles documentados por cidadãos em suas cidades, e que são disseminados nas redes sociais.
Não é a primeira guerra que acompanhamos nas redes sociais. Da mesma forma, não é a primeira e nem a última vez que jornalistas profissionais terão de enfrentar zonas de conflito para a realização de seu trabalho, colocando em risco suas vidas.
Como na metáfora de Ward sobre a névoa que impede de ver com nitidez os obstáculos, o mundo online mostra suas implicações para a liberdade de expressão e a democracia: com apenas alguns cliques e ajustes algorítmicos, as empresas de tecnologia podem passar de vilãs a guardiãs globais. Poder igual ou maior do que os estados-nação. O perigo mora exatamente nesse poder concentrado num oligopólio digital, que se coloca acima das regras democráticas das nações e de organismos multilaterais.
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Notas
WARD, S. J. A. Ethical Journalism in a Populist Age: The Democratically Engaged Journalist, 2018, E-book.
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/um-humorista.html
https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2022/03/03/verificamos-piloto-ucraniano-aviao-russo/
https://twitter.com/ThierryBreton
https://www.politico.eu/article/netflix-halts-all-russian-productions-after-public-outrage/
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Denise Becker é jornalista e mestra em jornalismo pelo Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É pesquisadora do Observatório da Ética Jornalística (objetos/UFSC) e autora de artigos em periódicos científicos sobre Transparência e Jornalismo.