O atual conflito entre Israel e o grupo palestino Hamas tornou clara uma mudança muito importante no desenvolvimento estratégico das guerras modernas. As armas passaram a ser coadjuvantes na verdadeira batalha que acontece bem longe das zonas de combate e cujo objetivo não é a conquista de territórios, mas sim de simpatias e adesões.
A estratégia militar de controle da narrativa existe há pelo menos 40 anos, mas ganhou relevância na era digital com o novo papel desempenhado pela informação na moldagem das percepções do grande publico sobre guerras. Como as principais fontes de informação das pessoas são a imprensa e as plataformas digitais, o jornalismo passou a ser um integrante chave no condicionamento dos fluxos noticiosos dentro das comunidades sociais.
O controle da narrativa é conhecido nos meios militares e entre os especialistas em estratégias bélicas pelo termo hebreu Hasbará (1) porque a Força de Defesa de Israel foi o primeiro exército ocidental a incorporar esta forma de ação psicológica no seu manual de operações. Os norte-americanos tentaram usar o Hasbará no Vietnam, mas fracassaram porque não conseguiram desenvolver uma narrativa capaz de despertar a simpatia dos vietnamitas. O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu parece estar cometendo o mesmo erro.
O que acontece na Faixa de Gaza desde o início de outubro não é uma guerra no sentido tradicional do termo, porque há um só exército em ação. O grupo extremista Hamas, usou inicialmente táticas terroristas para um ataque surpresa com captura de reféns. O episódio serviu para Israel colocar a Hasbará em ação ao procurar condicionar a forma como o mundo passaria a perceber a retaliação ao ataque do Hamas. Só que a reação foi tão violenta e produziu imagens tão chocantes que as simpatias iniciais pelo lado israelense foram neutralizadas pela percepção do horror dos bombardeios contra populações civis na Faixa de Gaza.
As estratégias de controle de narrativas em conflitos bélicos vão mais fundo do que as técnicas militares de propaganda e contrapropaganda. Nestas, o objetivo é impor atitudes e posicionamentos políticos favoráveis a um dos lados em confronto. Os responsáveis pela propaganda manipulam fatos e dados para impor ao publico uma forma de ver a guerra em curso. Já o controle de narrativas foca na mudança de valores usados pelas pessoas para fundamentar suas opiniões e posicionamentos. Em vez da imposição, usa a sutileza, para evitar que as pessoas se sintam manipuladas, usando meios de comunicação como a imprensa, para obter credibilidade.
A enorme desproporção entre os efetivos militares em ação em Gaza e na Cisjordânia indicaria uma vitória fácil e rápida de Israel, mas a guerra das narrativas conferiu um relativo equilíbrio entre os contendores. O Hamas, mesmo em considerável desvantagem, é favorecido pela disseminação das imagens de cidades arrasadas pelos bombardeios de civis desesperados por não terem para onde fugir e de crianças feridas ou mortas.
Apesar dos grandes conglomerados midiáticos globalizados serem simpáticos à causa israelense, eles acabam criando condições para a ampliação de narrativas que ajudam o Hamas. Isto acontece por causa do uso da velha técnica jornalística de impactar audiências com imagens e fatos chocantes. É o paradoxo embutido na Hasbará, cujos resultados dependem mais da inteligência do que da força da propaganda impositiva.
É uma narrativa muito eficiente no sentido de atrair simpatias e minar apoios políticos a Israel, como mostrou a evolução dos posicionamentos de países membros do Conselho de Segurança da ONU, do governo Biden, o principal aliado de Israel e a disseminação de protestos localizados, como o ocorrido em empresas como o Google e The New York Times. Netanyahu caiu na mesma armadilha dos norte-americanos no Vietnam quando imagens de crianças vitimadas pela guerra levaram a imprensa mundial a publicar matérias que anularam o resultado de conquistas no campo de batalha.
O aumento da efetividade do controle de narrativas em conflitos bélicos é uma consequência direta da generalização do uso das tecnologias digitais de informação e comunicação (TICs), e do processo de polarização ideológica em curso num grande número de países. A intensificação dos fluxos noticiosos através da internet ajuda a alimentar a polarização e aumenta a participação das pessoas no debate público.
Temos aqui mais um paradoxo das técnicas de controle de narrativas. A polarização amplia a separação e o antagonismo entre as partes em conflito. O lado ultraconservador se sente mais à vontade usando a imposição e a força, já que não consegue conviver com a diversidade de posicionamentos e a complexidade dos desafios políticos, sociais e econômicos. Na hora de conquistar corações e mentes, o controle de narrativas acaba sendo mais usado pelo lado oposto, apesar do fato da Hasbará ter sido criada por conservadores.
(1) Mais detalhes no texto publicado pelo Middle East Policy Council. Um manual israelense da Hasbará pode ser acessado AQUI.
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.