Há 23 dias, o mundo assiste mais um episódio sangrento e desigual de um conflito que se arrasta há sete décadas: o Estado de Israel contra a população palestina, confinada na Faixa de Gaza – um território com 365 km quadrados, no qual vivem mais de dois milhões de pessoas, a imensa maioria de origem palestina convivendo com muçulmanos e outras etnias. A escalada dos ataques israelenses caminha para a dimensão do genocídio da população palestina.
E tudo começou (em 07/10/2023) com os ataques do grupo político Hamas, caracterizados como terroristas pela quase unanimidade da mídia mainstream mundial – há veículos, como a BBC, que não consideram o Hamas como um grupo terrorista, mas sim suas ações. A guerra do Estado de Israel contra o povo palestino é enquadrada por nove em cada 10 veículos do jornalismo brasileiro, puxado pelo trio Globo, Folha de S. Paulo e Estadão, como “Guerra de Israel contra o Hamas”.
Na CNN Brasil, por exemplo, na primeira semana do conflito, o selo na tela era: “Israel sob ataque”, embora as imagens de fundo eram de mísseis e drones de alta tecnologia lançados por aquele país sobre uma população civil desarmada em Gaza. Sem embargo, porque distinguir os “terroristas do Hamas” em meio a mais de 2,5 milhões de pessoas é algo que nenhum foguete “inteligente” é capaz de fazer.
O mundo Ocidental, pelo menos, é objeto de uma cobertura enviesada, ideológica e politicamente, com as consequências de praxe para o Jornalismo como profissão e forma socialmente reconhecida de conhecimento. Alguns veículos buscaram, sob os escombros da complexa cobertura, algum tipo de equilíbrio com honestidade intelectual e jornalística. É o caso do Wall Street Journal, as redes noticiosas Al Jazeera e BBC; e as agências Associated Press e Reuters.
A informação imprecisa do New York Times
Ao Sul do Equador, um suposto erro de informação de um dos maiores jornais do mundo gerou, neste último fim de semana, um editorial do Estadão e uma coluna assinada pela jornalista Dorrit Harazim (O Globo, ed. 29/10/2023). Ambos tecem duras críticas ao New York Times que atribuiu, em sua versão online de 17 de outubro, ao governo do Israel o ataque contra o Hospital Al-Ahli Arab, em Gaza, que teria matado entre 200 a 300 pessoas – e deixando feridas outras centenas. O episódio hediondo gerou uma intensa guerra de informações e versões entre as diferentes partes envolvidas – Israel, Hamas, Jihad Islâmica, EUA e países do mundo árabe. Vou me ater ao editorial de O Estado de S. Paulo intitulado “O bom combate do jornalismo“.
O jornalão estadunidense publicou em sua versão online a seguinte manchete: “Ao menos 500 pessoas foram mortas por um bombardeio israelense em um hospital de Gaza, dizem os palestinos”. A matéria do NYT repercutiu em veículos como Reuters, Associated Press e MSNBC, dentre outros veículos. Foi o suficiente para o editorialista d’O Estadão enxergar uma onda de ódio mundial: “Massas enfurecidas tomaram as ruas de países islâmicos” – como se a guerra de Israel contra Palestina tivesse começado ali e, até esse preciso momento em que o NY Times publica a versão atribuída ao Hamas, a população árabe da região assistisse impassível o genocídio.
Com a mesma pressa que criticara o jornalismo do New York Times, o Estadão – sem apurar absolutamente nada – compra a versão de Israel e escreve em seu editorial: “As evidências apontam para um disparo malogrado de um foguete da Jihad Islâmica, outra organização terrorista de Gaza. Uma tragédia, ainda assim, mas, ao que tudo indica, não resultante da intenção de Israel de dizimar palestinos, e sim do descaso de terroristas com o povo que alegam defender e libertar”.
Para quem se notabilizou por publicar conteúdos alinhados com a extrema-direita e, há poucas semanas, uma coluna com uma fake news clássica contra o presidente Lula, o Estadão finaliza o seu combate contra o jornalismo com intenções que estão longe de seus gestos editoriais, políticos e ideológicos. Escreve o editorialista, como quem acabara de descobrir a pólvora digital: “As redes digitais estão infestadas de erros e mentiras, que, como se viu, podem ser disseminados até por grandes veículos, com consequências desastrosas. (…) Ainda assim, é impossível eliminar o risco de erros. Reconhecê-los e corrigi-los o mais rápida e honestamente possível é o caminho mais seguro para resgatar a confiança do público. Em uma palavra, a credibilidade do jornalismo será tanto maior quanto maior for a sua humildade”.
O Estadão não segue seu próprio conselho
A informação imprecisa foi corrigida e o conteúdo alterado sensivelmente pelo New York Times em questão de algumas horas, o que envolveu o trabalho de crítica interna e apuração, a partir do front. Há quatro anos, esperamos a autocrítica d’O Estadão quanto ao abjeto editorial intitulado “Uma escolha muito difícil”, publicado três semanas antes do segundo turno das eleições presidenciais de 2018. Em suma, afirmou o diário paulista: “De um lado, o direitista Jair Bolsonaro (PSL), o truculento apologista da ditadura militar; de outro, o esquerdista Fernando Haddad (PT), o preposto de um presidiário. Não será nada fácil para o eleitor decidir-se entre um e outro”. Num momento grave para a história da democracia no país, o jornal optou pela omissão.
No entanto, para não ir tão longe no tempo, o Estadão poderia seguir seu próprio conselho ao New York Times e corrigir a informação falsa publicada na coluna de Vera Rosa, em 03/10/2023, acusando o presidente Lula de interferir nas eleições argentinas. A colunista fantasiou: “Era uma sexta-feira do fim de agosto quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que tinha urgência em falar com Simone Tebet. A ministra do Planejamento não estava em Brasília, mas foi logo contatada por telefone. A pressa de Lula não era à toa: o Brasil precisava autorizar, ainda naquele mês, uma operação para que o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) concedesse empréstimo de US$ 1 bilhão à Argentina”.
Rosa e o Estadão foram desmentidos – sem que nem o jornal, tampouco a colunista, reagissem publicamente – pela ministra Simone Tebet (Planejamento) no dia seguinte: “Lula não me ligou (…) Despachei com minha secretária de assuntos internacionais, que disse que os demais países votariam a favor”, declarou a ministra aos meios de comunicação. Tebet se referia à votação realizada no CAF em relação ao empréstimo solicitado pela Argentina. A operação fora aprovada em 28 de julho pelos países que compõem o banco com 19 votos dos 21 possíveis. Nesse episódio, o Estadão não reconheceu, não corrigiu “o mais rápida e honestamente possível” como recomendou que seu congênere nos EUA o fizesse. Em menos de uma semana, o New York Times publicava uma correção.
A guerra de Israel contra o povo palestino caminha para um mês sem previsão sequer de trégua humanitária, a despeito dos esforços da diplomacia brasileira no Conselho de Segurança da ONU. O poder de veto dos EUA contra a resolução apresentada pelo Brasil (o único voto contra, com 12 a favor e duas abstenções) garantiu ao governo de Benjamin Netanyahu, que compôs seu governo com a extrema-direita israelense, o direito de seguir massacrando os civis palestinos na Faixa de Gaza.
Um dado que ilustra bem a dificuldade da cobertura “de gabinete”, refém do jogo da geopolítica de países como EUA, Israel e seus aliados, é a atualização do número de vítimas fatais da guerra. O site Poder360 publicou a informação em 29/10/2023, à guisa de atualização. Observem o enquadramento: “O número de mortos na guerra entre Israel e o grupo extremista Hamas chegou a 9.410 neste domingo (29.out.2023), de acordo com a última atualização do Ministério da Saúde palestino e da Al Jazeera (canal estatal do governo da monarquia do Qatar, que transmite notícias 24 horas em inglês). Estão divididos da seguinte forma: 8.005 palestinos mortos e 20.242 feridos; 1.045 israelenses mortos e 5.431 feridos. Essa informação não pode ser verificada de maneira independente pelo Poder360”.
O direito de “autodefesa” alegado por Israel para negociar um cessar fogo que poupe a vida de milhares de civis – dos dois lados da fronteira – é na verdade o direito de prosseguir com a vingança de um dos exércitos mais poderosos do mundo (com apoio ostensivo dos EUA e aliados na Europa) contra a população confinada na Faixa de Gaza. Até o final de outubro, a macabra proporção era 8 palestinos para cada israelense morto. O jornalismo de combate defendido pelo jornal O Estado de S. Paulo se alinha sempre, por absoluta afinidade ideológica, aos que detém o poder político e econômico aqui e alhures.
Texto originalmente publicado em objETHOS
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Samuel Pantoja Lima é jornalista, docente do PPGJOR/UFSC e pesquisador do objETHOS