Num longo texto, mostramos como a esquerda brasileira reage diante da estrutura político-religiosa de Israel chamada sionismo e como vê o futuro para os palestinos. Ainda no texto seguinte, sobre judeus de esquerda, vimos a rejeição ao conceito de Estado étnico, no qual se entra só por herança sanguínea. Essa posição é tão marcante que esse grupo propõe mesmo a recriação de Israel como um Estado nacional sem exigência étnica. Com que forma? De Estado único no qual convivam judeus e palestinos ou na existência de dois Estados vizinhos, um palestino e outro judeu?
Essa seria a garantia de paz duradoura entre esses dois povo inimigos milenares? Alguém me alerta: nessas duas hipóteses Israel sairá perdendo, mesmo sem guerras, porque os palestinos têm uma bomba natural mais potente – a bomba demográfica!
Mas isso é uma visão muito pessimista e negativa, alguém argumentará. Vivendo juntos ou próximos com os mesmos direitos, eles começarão a se misturar como acontece no Brasil entre os brancos escravocratas e os descendentes dos escravos negros, depois da abolição da escravatura e de todos os brasileiros serem iguais, sendo punida toda forma de racismo.
E com o Velho Testamento bíblico na mão, outro poderá argumentar: só poderá dar certo porque judeus e palestinos descendem de Ismael e Isaac que eram meio-irmãos pois o pai era o mesmo – o já idoso Abraão. Essa é uma história bem antiga, de uns 4 mil anos, quando ainda não se falava em casamentos entre jovens príncipes e princesas, mas numa sociedade em que havia escravas e seus proprietários eram pai e mãe centenários.
Sendo verídica essa história, poderíamos ser otimistas e imaginar o reencontro familiar entre os netos e filhos desse patriarca. Porém, briga de família a três pode complicar na hora de repartir a herança e a mesma fonte bíblica fala em guerras sem fim entre judeus com cananeus e filisteus, todos parentes, circuncisos e descendentes do mesmo bisavô e tetravô! E com o passar do tempo, turcos, libaneses, egípcios e iranianos poderiam ser considerados primos.
Tudo se complicou quando todos, exceto os judeus, no Oriente Médio passaram a seguir Maomé, surgindo o islamismo. Mesmo assim, restaram duas vertentes islâmicas: a dos sunitas e dos xiitas, nem sempre amigas. O Irã é xiita e a Arábia Saudita, sunita.
Depois da queda do Xá Reza Pahlevi, o Irã xiita se tornou uma rigorosa teocracia islâmica seguidora da shariah, o conjunto de leis que codifica todas as exigências religiosas públicas e privadas dos muçulmanos, adotada com graduações diferentes pelos países muçulmanos. Nem todas as regras da shariah são compatíveis com os direitos humanos, como liberdade de expressão, liberdade de crença, liberdade sexual e de gênero e liberdade das mulheres. No Irã, a teocracia é repressiva principalmente contra as mulheres, havendo assassinatos cometidos pela polícia por simples questão de vestimenta. O cinema vive também sob censura.
Os sunitas são considerados mais tolerantes, porém inspiraram alguns movimentos considerados extremistas como Al-Qaeda, Estado Islâmico. Boko Haram e Hamas.
A esquerda deixou de ser laica?
Será que meus amigos de esquerda estão certos? Nestas semanas de guerra de Israel contra o Hamas, todos os textos aos quais tive acesso, cujos autores são de lideranças reconhecidas de esquerda, me deixam a impressão de estar havendo uma confusão involuntária (ou será voluntária, estratégica, temporária?) entre povo palestino com o movimento Hamas. A ponto de se declararem enfaticamente defensores do Hamas contra Israel. Será que a partir de agora todo esquerdista tem de ser obrigatoriamente a favor do Hamas, mesmo se a esquerda e, não é de hoje, vem criticando o sionismo e a política israelense com relação aos palestinos? Depois de termos dado bastante espaço à questão do sionismo israelense, parece ser a vez de se discutir o caráter religioso fundamentalista islâmico do Hamas. O conceito laico da esquerda deixou de ser básico e se tornou superado?
O tema é bastante complexo porque além do caráter laico dos grupos palestinos que deram origem à OLP, Organização pela Libertação da Palestina, inclui também a questão da utilização de atos terroristas na conquista do reconhecimento das reivindicações palestinas.
O primeiro desses atos, que provocou divisões dentro da esquerda internacional, foi o atentado nos Jogos Olímpicos de Munique em 1972. O último atentado, o do 7 de novembro com a invasão de Israel e o assassinato de centenas de civis desarmados, voltou a provocar divisões, chegando a romper a união das esquerdas francesas.
É bom lembrar que, em 1948, tanto a URSS quanto os socialistas e os comunistas franceses apoiaram a criação de Israel. O apoio socialista estava ligado ao partido trabalhista no poder em Israel e os kibutz israelenses eram considerados um tipo de experimentação socialista. O apoio da URSS durou pouco e o apoio aos árabes foi seguido pelos comunistas europeus.
Nos anos 70 por influência dos católicos de esquerda e dos franceses anticolonialistas, surgiu o apoio à causa palestina, seguido pelos maoístas.
Com o fim da guerra do Vietnã, os comunistas e a esquerda francesa focaram seu apoio em Yasser Arafat. Mitterrand e os socialistas continuavam defendendo a existência de Israel e Arafat acabou reconhecendo a existência de Israel e aceitou a coexistência de dois Estados. Mas o governo de direita em Israel e a Intifada fortaleceram a esquerda pró-palestina que denunciou Israel como Estado opressor e de apartheid, denunciando também o sionismo.
A situação tomou novas feições no fim dos anos 1980, quando os maiores apoiadores dos palestinos contra Israel eram o Hezbollah e o Hamas, dois movimentos islâmicos fundamentalistas. O fim do laicismo ou secularismo na luta pelos palestinos provocou divergências entre os socialistas e comunistas franceses, mas vinha sendo tolerado diante do eleitorado árabe muçulmano gerado pela imigração. Entretanto, a brutalidade do atentado do Hamas do 7 de outubro dividiu a esquerda francesa e voltou à atualidade a questão do movimento palestino estar nas mãos do islamismo, cujas dimensões vão além da causa palestina e representam, em muitos aspectos, um retrocesso no movimento da descolonização palestina.
O avanço do islamismo fundamentalista entre os países árabes, que chega a ter influência mesmo na atual Turquia, e mesmo em países africanos saídos da colonização, preocupa por representar uma marcha-à-ré na questão dos direitos humanos e na própria concepção de uma sociedade socialista. Diante da teocracia islâmica no Irã, com aplicação da lei da shariah com punições físicas e pena de morte, ocorre um nítido recuo na liberalização feminina, uma rejeição total da questão dos gêneros com a não aceitação da homossexualidade, entre outras tantas exigências religiosas.
Enfim, uma bem argumentada demonstração da incompatibilidade do movimento Hamas com os objetivos revolucionários marxistas é feita pelo órgão da União comunista trotskista, Luta Operária, mostrando não existir para a esquerda só a opção primária, “quem é contra Israel tem de ser a favor do Hamas”.
O trecho conclusivo de um longo artigo parece bem demonstrativo da pressa com que a esquerda brasileira aderiu aos islamitas: “O Hamas procura de fato um compromisso com o imperialismo e o reconhecimento deste, mesmo que fale em destruir a “entidade sionista” de Israel. Ele defende os interesses da burguesia palestina e as suas políticas estão em desacordo com os interesses dos palestinos oprimidos, cuja revolta ele teme. Pelo contrário, é com estes que os revolucionários devem estar unidos na luta contra o imperialismo. Apoiar o Hamas por do oportunismo, assimilando-o à “resistência legítima” de todo um povo, fazendo do reconhecimento do sentimento palestino de opressão nacional o apoio à política nacionalista de uma organização religiosa reacionária como o Hamas, equivale a abdicar de toda a política de classe”.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.