O colega Carlos Castilho contou com pormenores a novidade jornalística dos “explicadores” da guerra na Ucrânia.
Aproveitando a deixa criada, vou falar do “farejador” da mesma guerra, o youtuber Arthur do Val, político e empresário, vítima de suas próprias palavras em áudios gravados na rede social WhatsApp, que viralizaram, reproduzidas num vídeo no Youtube, e se tornaram a principal notícia e tema político-social (e sexual) da semana.
A imprensa escrita chegou só depois de Igor Gadelha, do jornal online Metrópoles, ter posto no ar a montagem feita por Gustavo Zucchi dos áudios enviados por do Val (conhecido como Mamãe Falei) da Ucrânia para seus amigos da chamada direita liberal do Movimento Brasil Livre. Arthur tinha ido à Ucrânia para ajudar os ucranianos na resistência à invasão russa, tendo mesmo posado com um coquetel molotov por eles fabricados, mas pelo jeito perdeu o rumo e foi importunar ucranianas na fila de refugiadas.
Sua frase machista, “as mulheres ucranianas são fáceis porque são pobres”, provocou comoção nacional e reações mesmo entre os machistas brasileiros, como o presidente Bolsonaro. Assustado com a repercussão, Mamãe Falei pediu desculpas, cancelou sua pretensão de ser candidato a governador de São Paulo e corre o risco de seu mandato de deputado, pelo partido Podemos, ser cassado.
Nada disso tem acontecido com o presidente Bolsonaro, cuja linguagem misógina, machista e desrespeitosa às mulheres é bem conhecida. Frases como “não estupro porque é feia”, “mulheres deveriam ganhar menos” e “queria dar um furo” falando pejorativamente de uma jornalista, não tiveram pedido de desculpas e nem provocaram um merecido impeachment.
Essa reação é viva ainda nesta semana, que inclui o Dia Internacional da Mulher. Continuam circulando reações sobre a vulnerabilidade das mulheres em campos para refugiadas ou saindo de zonas de guerra, em trânsito para obter refúgio em outro país. Em destaque o Youtube com a carta aberta do jornalista Jamil Chade, na qual Jamil utiliza de sua experiência em reportagens feitas em zonas de guerra para demonstrar a fragilidade das mulheres e mesmo de crianças refugiadas.
Ucrânia, quando a vida não vale nada
Outra declaração feita na semana não provocou mobilização da imprensa, mesmo sendo importante e bastante reveladora, embora restrita ao canal petista TV 247, sem repercussão na imprensa escrita. Foi feita pelo presidente do Partido da Causa Operária, Rui Costa Pimenta, na qual ele minimiza a importância da perda de vidas humanas nas guerras. De certa forma, ela completava uma longa exposição feita no Youtube do partido, sob o título “Porque Putin está certo em invadir a Ucrânia”.
Essa questão da invasão de um país soberano e independente, sem a consumação de uma provocação ou ameaça, já foi condenada pela ONU, inclusive com o voto do Brasil, mas provocou uma divisão dentro da esquerda brasileira. Para exemplificar, me sirvo de duas reações antagônicas de esquerdistas publicadas em regiões bem distantes. Uma publicada no blog Taquiprati (cujo título sintetiza o gesto de dar uma banana com os braços) em Manaus, pelo jornalista Bessa Freire (que vivia em Paris, onde o conheci, na época da ditadura militar), citando de uma interpretação feita pelo jornalista Breno Altman, na Folha de S.Paulo, que compartilho:
“Quem provocou o conflito?” indaga Breno Altman na Folha (01/03/2022). Ele mesmo responde: Foi “a Casa Branca, apoiada por vassalos europeus” que “empurrou Vladimir Putin ao caminho das armas, fechando as portas diplomáticas”. Sua lógica é similar à do machismo cínico que absolve o estuprador e culpabiliza a mulher de minissaia “que o seduziu” porque queria vê-lo punido. Segundo Altman, a Casa Branca “provocou a guerra para justificar sanções econômicas draconianas que quebrem a Rússia e, de preferência, afetem as finanças de Pequim”.
Ou seja, comenta Bessa Freire, “a Casa Branca forçou o Kremlin a matar e esfolar os ucranianos. O pobre Putin, sem alternativa – coitado! – atacou a Ucrânia contra sua vontade e dessa forma colaborou com a OTAN, justificando assim as sanções econômicas. Francamente, além de zombar da nossa inteligência, isso enfraquece a crítica contundente que devemos fazer ao imperialismo americano.”
Esse exemplo dá uma ideia geral do clima dentro da esquerda brasileira.
Porém, a citada posição do Rui Costa Pimenta de apoio à invasão russa, preocupou Leonardo Attuch, da TV 247, que candidamente como eu, se preocupa com as consequências de uma invasão bélica, ou seja, as pessoas comuns, chamadas de população civil, que morrem ou ficam estropiadas. E Attuch se tornou, de certa forma, o intérprete dessa esquerda com preocupações humanitárias, ao fazer sua pergunta ao vivo:
“Rui Costa Pimenta, tenho uma questão filosófica, humanística e ética que vou colocar para você. Uma guerra como essa, provoca cenas devastadoras, trágicas, muitas mortes e muita destruição. Adotando a posição que você adota, você não receia ficar carimbado como uma pessoa sem empatia, sem humanismo, sem solidariedade às vítimas?”
E veio a resposta:
“Eu acho absurdo que o pessoal faça todo esse drama por uma invasão russa que deixou (?) pouquíssimas vítimas, comparada com qualquer outra guerra que a gente já viu nos últimos anos, ao mesmo tempo que estão acontecendo guerras no mundo que deixam centenas de milhares de vítimas”.
“Quando a gente olha o panorama mundial, você sabe que esse problema do imperialismo não vai ser resolvido de maneira pacífica” (…) Não se tata de um problema de contabilidade mas, no final das contas, é muita gente morta na guerra da Ucrânia, contra muita e muita gente morta nas outras guerras. A gente tem de pensar no ser humano, mas a gente tem de ver o quadro completo. (…) Eu acho que a iniciativa dos russos vai poupar muitas vidas se ela for bem-sucedida. O humanismo tem de passar pela realidade concreta, e na realidade concreta nós temos conflitos, não dá para ignorar o conflito e dizer eu sou a favor da paz em geral. Isso não é possível.”
É isso mesmo? Estou fazendo todo um drama ao me preocupar com mortes e destruição? Afinal, como lembrou alguém no Facebook, mortes de civis confirmadas são 400, e isso morre sem guerra no Rio, em algumas noites agitadas. Deve ser exagero, mas pode também ser verdade. O número de vítimas na Ucrânia, até agora, é desencontrado. Dependendo da fonte de informação, russa ou ucraniana, pode ser, mais ou bem menos, dez mil entre civis e soldados.
Vale a pena chorar por eles? Afinal, são vítimas do imperialismo… americano? ou russo? Interessa? Reinaldo Azevedo, outra fonte bem-informada, está preocupado com o risco de guerra nuclear, que seria bem maior que a crise da implantação de mísseis balísticos nucleares em Cuba pela Rússia, que naquela época, outubro de 1962, se chamava União Soviética.
E se Putin, depois de ter ameaçado, decidir mandar ver? Só o Silas Malafaia ficará contente, pois vive pregando que o fim está próximo com o Apocalipse e a volta de Cristo!
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.