Até o surgimento e a popularização das redes sociais, o dia a dia das redações dos jornais em anos eleitorais, em especial de eleições municipais como o atual, costumava ser movimentado. Os repórteres precisavam ter cuidado para não cair na armadilha de candidatos a vereador. Eles armavam uma manifestação pública em uma comunidade reivindicando um serviço qualquer, chamavam o jornal para cobrir e o repórter acabava pisando numa casca de banana e fazia uma matéria acreditando que se tratava de um movimento popular legítimo. Lembro-me que na década de 80 e até metade dos anos 90 o principal alvo dos candidatos eram os serviços de emergência médica, que eram precários e muito procurados. Certa vez fiz uma matéria sobre uma pessoa que se acorrentou na porta de um posto de emergência médica. Elegeu-se vereador em uma cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre. Tive um diretor de redação que, sempre que um líder popular ganhava excessivo espaço nos noticiários, advertia: “Ele vai se candidatar a alguma coisa”. Acertava na maioria das vezes.
Lembro-me que certa vez um veterinário levou um rato para uma manifestação pública contra a falta de higiene na produção de alimentos. Iniciou-se ali uma carreira política que dura até os dias de hoje. Na época, eu fazia a cobertura dos conflitos agrários que estavam eclodindo em vários rincões do Brasil com o fim do regime militar (1964 a 1985). Conhecia lideranças ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e de outras organizações campesinas que estavam comprometidas com as lutas pela reforma agrária havia muitos anos. Em anos eleitorais, esses líderes perdiam espaço na imprensa porque nas redações havia a tese de que estavam “querendo se eleger”. Nessa época, era incrível como um editor tinha poder real nas mãos. Se ele não publicasse alguma notícia, ninguém saberia o que tinha acontecido. Uma das maneiras do repórter driblar esse poder era “contrabandear” as informações para dentro do texto. Um dos truques mais usados era dizer para o editor que o concorrente tinha a mesma informação. O editor levantava da sua mesa, caminhava até sala do diretor da redação, trancava-se com ele por um tempo e saia de lá com a decisão de publicar a matéria. No dia seguinte, o concorrente não trazia a informação e o editor, furioso, cobrava do repórter. Sempre que recebi uma cobrança desse tipo eu respondi: “Liga para o teu colega no concorrente para ver se ele ainda está por lá ou foi demitido”. Pela convicção com que eu falava, dava a impressão de que algo havia acontecido. Claro que eu não sabia de nada. Certa vez tive um editor que, sempre que eu estava envolvido na cobertura de um conflito agrário e enviava a matéria para a redação, perguntava: “Wagner, onde está o contrabando? Não tenho tempo para ficar procurando”. Na época, enviar uma reportagem (texto e foto) para a redação era uma façanha. O texto era transmitido pelo telex, uma espécie de máquina de escrever enorme conectada à linha telefônica, que era rara de encontrar pelo interior do Brasil. As fotos eram enviadas por telefoto, outra geringonça complexa de operar que o fotógrafo carregava de um lado para o outro. Os dois equipamentos dependiam da existência de linhas telefônicas, que também eram escassas e funcionavam mal.
Trabalhei em redação de 1983 até 2014. Peguei, portanto, o surgimento e a popularização dos computadores e das redes sociais. As coisas começaram a mudar no final da década de 90, quando as redações começaram a perder importância no cotidiano da comunidade por não serem mais o único canal que dava visibilidade para os acontecimentos. Nas atuais campanhas eleitorais, em especial as municipais, um candidato com um celular na mão vende o seu peixe e tem boas possibilidades de se eleger. Mudou também o discurso dos candidatos. Se na época do jornal papel ser herói da luta por uma causa popular dava voto, hoje a estratégia é fazer o maior esculacho possível do adversário. Claro, as redações dos jornais perderam relevância em promover candidatos. Mas ganharam corpo na fiscalização do jogo eleitoral. Vejam bem. Nos tempos do jornal de papel, um editor tinha o poder de publicar ou não um acontecimento. Se não publicasse, era como se o fato não tivesse acontecido. Por mais relevante que fosse. As novas tecnologias acabaram com esse poder. Na minha opinião de repórter foi um tremendo avanço para a sociedade. Disse isso durante uma palestra que dei para uma redação no interior do Brasil.
Durante essa palestra, acrescentei que, naqueles tempos, as emissoras de rádio e as redações de jornais pelo interior do Brasil tinham nas mãos um real poder de ajudar os candidatos que lhe fossem convenientes. Vi isso acontecer em várias cidades. Hoje, o poder nas cidades pequenas está nos grupos de WhatsApp das famílias e no Facebook. Do que tenho saudades daquele tempo é do movimento de entra e sai de gente nas redações às vésperas das eleições. Adorava conversar com pessoas que tentavam convencer o repórter que o seu assunto era uma grande matéria. Na verdade, não era. Já que o único beneficiado era o autor. Não tenho como comparar se os candidatos eleitos naqueles tempos eram mais capazes do que os atuais ou vice-versa. O que podemos afirmar é que as redações eram mais divertidas. Hoje, os repórteres têm tantas funções (redigir, fazer vídeos, editar áudios) que não sobra tempo para se divertir. Como comentou um jovem durante uma das minhas palestras: “As redações estão mais carrancudas”. Nessas eleições municipais, a extrema direita já montou uma eficiente máquina de fake news que tem se mostrado uma boa e competente máquina de publicidade. Qual será o grau de influência que terá nas eleições municipais? Creio que só tempo responderá.
Publicado originalmente em “Histórias Mal Contadas”
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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.