Há 60 anos a internet era apenas um projeto militar e a arena privilegiada do que chamam hoje de “disputa de narrativa” eram os jornais impressos. Poucos acontecimentos da vida brasileira acirraram tanto os ânimos como o Golpe Militar de 1964. Após um período de 19 anos elegendo presidentes pelo voto, o país mergulhava novamente no breu da ditadura. Se o desejo pela derrubada do Governo Goulart uniu a maioria dos donos de empresas de comunicação cariocas, essa parceria não durou muito. O caso da Universidade Rural do Brasil (URB) – atualmente Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) – é paradigmático para se perceber os posicionamentos dos jornalões da época frente ao governo ditatorial.
Neste artigo, tomei como amostra notícias referentes à repressão ocorrida na URB durante 1964 publicadas em dois veículos: Correio da Manhã e O Globo. O jornal da família Bittencourt mudou de posição logo no dia 9 de abril com a edição do primeiro Ato Institucional. Eram os militares mostrando os dentes ao impor um aparato jurídico que os permitiu cassar deputados e senadores, demitir funcionários públicos, como o reitor da URB professor Ydérzio Luiz Vianna, e ensaiar uma longa permanência no Planalto apesar dos discursos do Marechal Castelo Branco prometendo o contrário.
O Globo nas trevas…
O jornal dos Marinho foi o primeiro a mencionar a Rural após o 1º de abril. Publicou uma nota no dia 6 afirmando terem sido apreendidos pelo Exército “grande quantidade de material subversivo e algumas metralhadoras” no campus universitário. Três dias depois, veiculou carta do reitor da Universidade negando a informação. A partir de então, o jornal assumiu o papel de Diário Oficial do Golpe. No dia 10, escreveu que militares haviam tomado “fitas gravadas contendo discursos subversivos” dos arquivos da URB.
Em 28 de abril, o reitor Ydérzio foi demitido do cargo e, pouco tempo depois, preso no Quartel Depósito de Munições em Paracambi (RJ), município vizinho à Rural. Silêncio em O Globo. Com a instauração de um Inquérito Policial-Militar chefiado pelo comandante do tal quartel, Coronel Carneiro de Mendonça, e a Universidade sob intervenção, havia a necessidade de um espaço privilegiado na mídia carioca para justificar o que ocorria ali.
Nos meses de junho e julho, o jornal da família Marinho lançou mão das suas páginas para que Carneiro de Mendonça negasse que expulsara um estudante da URB e também que tivera desentendimento com um professor da faculdade de Agronomia. Ainda em julho, O Globo publica um Edital de Citação com os nomes de estudantes e funcionários intimados a depor no Quartel de Paracambi. A maioria deles, no entanto, já havia sido presa na própria Universidade alguns dias antes.
Em setembro, O Globo publica uma carta do interventor civil na reitoria da URB, Frederico Pimentel Gomes, para rebater notícia publicada em “um matutino” sobre a expulsão do estudante Mozart Damasceno do Colégio Técnico Agrícola vinculado à Universidade.
…E o Correio na alvorada
O Correio da Manhã foi um grande espaço de denúncia às arbitrariedades do Governo Militar. Apesar da oposição veemente à João Goulart e apoio ao Golpe, a posição de complacência com os militares durou somente até a edição do AI-1. No caso da URB, o Correio mencionou a Universidade pela primeira vez numa nota em 24 de abril com o título “Terrorismo Expulso”. Nela, o jornal afirmava que “o reitor da Universidade Rural do Brasil (…) logo que teve conhecimento de que o terrorismo forçara as portas da URB, em busca de estudantes, expulsou dali esse subproduto expúrio da revolução vitoriosa”.
Nem tão a sul o sombreiro. Na verdade, o Reitor havia acompanhado uma busca do Exército aos alojamentos estudantis que não apreendeu nenhum objeto e conseguiu dissuadir o Coronel Carneiro de Mendonça a levar estudantes presos para averiguação, segundo documentos da época tanto da URB quanto do Exército.
Em maio, porém, o Correio da Manhã assumiu uma denúncia corajosa contra a Ditadura. O jornalista Márcio Moreira Alves publicou no dia 27 a notícia do sequestro e tortura de dois estudantes da URB: José Valentim Lorenzetti e Dorremi Oliveira. Em seu livro Torturas e Torturados (1966), Moreira Alves afirma que após a publicação da matéria, ele passou a receber diversas outras denúncias do tipo e a publicá-las regularmente no Correio da Manhã.
No texto, o jornalista também detalha a intervenção militar na URB sob chefia de Pimentel Gomes e do “coronel comandante da guarnição de Paracambi, responsável pelo Inquérito Policial Militar”. Também relata as batidas de revista aos alojamentos, prisões durante o almoço no restaurante universitário e a ação de “dedos-duro”.
A notícia repercutiu na Câmara dos Deputados e o Jornal do Brasil também noticiou tanto as torturas como também o clima de terror na Universidade nos dias posteriores.
“Terror” foi uma palavra que o Correio da Manhã não se furtou de usar para descrever a situação na Universidade Rural do Brasil. Em 29 de agosto, o jornal publicou matéria cujo título era “Coronel comanda o terror na U. Rural”. Nela apresenta um panorama da situação vivida pelos estudantes da URB. Foi esta matéria que motivou a resposta do interventor Pimentel Gomes nas páginas de O Globo.
Em outubro, no dia 2, o Correio da Manhã dedica matéria de página inteira à situação da Universidade. O título é “URB merece melhor sorte” e começa assim: “O 1º de abril foi particularmente cruel com a Universidade Rural do Brasil. Sofrendo a vizinhança da unidade militar de Paracambi, o grande centro de ensino e pesquisa do Km. 47 foi transformado em parque de piquenique de soldados e agentes policiais. Prisão do reitor. Espancamento de estudantes. Fechamento dos diretórios acadêmicos. Vem agora a colação de grau: dia 17, de 32 veterinários; dia 24, de 73 engenheiros-agrônomos. Com reitor de mentira – interventor. Com Inquérito Militar pesando sobre professores, alunos e funcionários”.
A longa reportagem comenta ainda a campanha de difamação ao reitor cassado com boatos espalhados sobre corrupção e má administração, sobre a inabilidade do interventor que viaja toda a semana para Piracicaba às custas da Universidade e o único ato foi o aumento de preço da refeição no restaurante universitário, sobre a falta de material para aulas práticas e também o ambiente de ameaças e boatos.
No dia 23 do mesmo mês, o Correio voltou à carga ao comentar em nota a cassação de Ydérzio do cargo de professor catedrático. O título é “Vítima da abrilada” e qualifica o ex-Reitor como “vítima do obscurantismo implantado em abril”.
Ao longo dos anos, o Correio da Manhã e O Globo continuaram a travar disputa ferrenha sobre as versões dos fatos da vida pública brasileira, inclusive àquelas referentes à Universidade Rural do Brasil. Os jornais continuaram acompanhando o processo judicial que seguiu ao fim do IPM e também aos acontecimentos dentro da Universidade.
Esse embate custou caro à empresa dos Bittencourt que, asfixiada pelo boicote econômico promovido pela Ditadura, fechou em 1974. Já a empresa de Roberto Marinho foi catapultada à condição de dominante no segmento graças às suas relações com os generais que comandavam o país.
A pesquisa realizada sobre o ano de 1964 na URB encontrou, além de notícias em jornais da época, documentos ainda inéditos produzidos pela própria Universidade, pelo Exército, pela Justiça Militar e um relato escrito em primeira pessoa por Lorenzetti onde ele relata todas as prisões e torturas sofridas, além do calvário da condenação por subversão até sua absolvição no Superior Tribunal Militar.
O texto completo pode ser acessado aqui.
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Igor Ferraz é documentarista, jornalista e pesquisador.