Publicado originalmente no site objETHOS
Nascido como “filho da modernidade”, cujo modelo de jornal-empresa remonta ao período entre 1830 e 1840, na França, o jornalismo veio ao mundo fazendo três promessas seculares: a defesa da liberdade (especialmente a de expressão e de imprensa), da democracia e do paradigma da verdade. Sob o signo das luzes da revolução burguesa (1789), essa forma social de conhecimento foi aos poucos ocupando seu espaço nas modernas sociedades de consumo nascentes, florescendo numa íntima relação com o regime democrático.
Menos de dois séculos depois, na transição entre o fim da modernidade e aquilo que se convencionou chamar de “pós-modernidade”, o jornalismo e todas as formas sociais de conhecimento, construídas e reconhecidas histórica e socialmente, encontram-se imersos na mais profunda crise de relacionamento com seus públicos, centrada na erosão da credibilidade e no aparente recrudescimento do credo sobrepondo-se à ideia generosa do conhecimento humano.
A imprensa brasileira já nasceu sob a tutela do poder político de Estado, nos idos de 1808, com a vinda da família real. Em 10 de setembro de 1808, começava a circular a Gazeta do Rio de Janeiro, o jornal “chapa-branca” do governo português na colônia, veiculando apenas notícias favoráveis à corte. No entanto, o germe da “oposição” ao regime já havia brotado, alguns meses antes. Em 1º de junho de 1808, o jornalista Hipólito José da Costa, exilado em Londres, lançara naquela capital o primeiro jornal brasileiro: o Correio Braziliense – que só circularia no Rio de Janeiro em outubro daquele ano, com grande repercussão na elite letrada, sendo imediatamente proibido e apreendido pelo governo português. Assim, entre afagos à corte e a censura, nascia a imprensa no Brasil, sob um rigoroso regime de controle e censura régia: só circulavam jornais com autorização de D. João VI.
É importante, contudo, registrar que a história política do Brasil é uma espécie de “percurso do acidente” no que se refere às fugazes tentativas de aqui criarmos uma “res-publica”, espelhada nas democracias liberais, cuja baliza foi a tríade “liberdade, igualdade e fraternidade”. Nestes quase 520 anos de história política, em raros momentos isso se insinuou, e percentualmente talvez não chegue a 2% desse marco temporal. A primeira Constituição Federal de cunho liberal foi promulgada somente em 1946, consagrando direitos elementares tais como: igualdade de todos perante a lei; liberdade de manifestação de pensamento, sem censura, a não ser em espetáculos e diversões públicas; liberdade de associação para fins lícitos; a legalização do Partido Comunista, que duraria apenas seis meses após a promulgação. O golpe civil-militar de 1964 liquidava a tentativa de instituição da democracia liberal, e adotaria uma outra Constituição (1967), com retrocessos gerais, dando início ao mais longo período de ditadura no país (oficialmente, 21 anos). A “democracia” à brasileira é tão incipiente e bizarra que somente a partir de 1989 teríamos uma sequência de oito eleições diretas para presidente da República (de Collor, em 1989, a Bolsonaro, 2018). Sucintamente, seguem notas sobre o papel da imprensa nos dois golpes mais recentes: o de 1964 e o de 2016.
O papel da imprensa em 1964
Há muita pesquisa, em nível de excelência, sobre esta temática. Constato isso só para justificar que farei uma breve referência à obra A rede da democracia (Nitpress e Ed. UFF, 2010), do jornalista e pesquisador Aloysio Castelo de Carvalho, docente da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Após uma vasta pesquisa, Carvalho elucida a “estratégia utilizada por veículos de comunicação para derrubar o governo João Goulart”, contribuindo decisivamente para a implantação da ditadura civil-militar em 31 de março de 1964. Ele examinou a ação dos grupos de comunicação representados pelos Diários Associados (O Jornal), de O Globo e do Jornal do Brasil e suas emissoras de rádio (Tupi, Globo e JB). Escreve Carvalho: “Em apoio aos grupos políticos de direita, os três jornais aproximaram suas linhas editoriais e usaram o programa radiofônico A rede da democracia para acusar o governo de comunismo – por conta dos projetos de reforma de base que Jango planejava implantar -, abrindo espaço para denúncias e manipulando a opinião pública”.
A imprensa hegemônica, à época, sustentou a “Marcha da Família com Deus, pela Liberdade” e foi “porta-voz” e protagonista, a um só tempo, dos que pediam a ditadura, ferindo de morte a tentativa de o trabalhismo realizar algum tipo de política pública que pudesse mitigar as desigualdades sociais e distribuir riquezas e oportunidades à população. A pálida democracia liberal era sepultada pelos coturnos dos militares golpistas sob o réquiem tocado pela mídia tradicional.
Um dos principais agentes políticos da imprensa brasileira no pós-1964, as Organizações Globo só vieram a fazer uma autocrítica pública sobre o apoio ao golpe quase cinquenta anos depois, num editorial publicado em 31 de agosto de 2013, precedido de um texto do qual destaco um trecho: “Desde as manifestações de junho, um coro voltou às ruas: ‘A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura’. De fato, trata-se de uma verdade, e, também de fato, de uma verdade dura”. “A lembrança é sempre um incômodo para o jornal, mas não há como refutá-la”.
E o final, sem meias palavras, o último parágrafo do editorial: “À luz da História, contudo, não há por que não reconhecer, hoje, explicitamente, que o apoio foi um erro, assim como equivocadas foram outras decisões editoriais do período que decorreram desse desacerto original. A democracia é um valor absoluto. E, quando em risco, ela só pode ser salva por si mesma” (grifo meu).
O jornalismo no golpe de 2016
Como tragédia e farsa, a um só tempo, os grandes grupos de comunicação que compõem o oligopólio privado da mídia jornalística, à revelia da Constituição (1988), voltariam a cometer os mesmos equívocos e atuar contra o Estado Democrático de Direito – com todas as suas imperfeições, fruto do processo histórico que teve na chamada “redemocratização” (após 1985) a experiência mais longeva.
Em novembro de 2018, a professora Christa Berger (UFRGS), pesquisadora de referência no campo jornalístico, apresentou uma conferência no Encontro Nacional da SBPJor, em São Paulo, cujo título é perfeito: “Jornalismo brasileiro, o inimigo íntimo da democracia”. Citando o filósofo búlgaro Tzvetan Todorov, Christa vaticinava: “A democracia produz, nela mesma, forças que a ameaçam, e a novidade de nossos tempos é que essas forças são superiores àquelas que a atacam de fora. Combatê-las e neutralizá-las é tanto mais difícil quanto mais elas invocam o espírito democrático e possuem, assim, as aparências da legitimidade”. E acrescentava a pesquisadora gaúcha: “A essas forças poderosas, porque atacam desde dentro, ele chama de ‘inimigos íntimos da democracia’. Pela onipresença na sociedade, pela aparência de legitimidade e pelo poder de dar a ver os acontecimentos, ele identifica a mídia hegemônica como a principal inimiga íntima da democracia” (grifo meu).
Evidentemente sem nenhuma pretensão de esgotar este vastíssimo assunto, destaco dois momentos que reputo altamente relevantes na história do golpe midiático-jurídico-político que culminou com o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, em 31 de agosto de 2016.
Em primeiro lugar, o que avalio como absolutamente decisivo na correlação final de forças que permitiu o golpe de 2016: a divulgação do “grampo” da conversa telefônica entre o ex-presidente Lula e a ex-presidenta Dilma, no Jornal Nacional (TV Globo), na abertura da edição de 16 de março de 2016 (fonte: https://bit.ly/2mejshD). Uma manipulação que envolveu o então juiz Sergio Moro e a força-tarefa da Lava Jato, agora revelada em detalhes pela Vaza Jato (reportagem publicada pela Folha de S. Paulo, em parceria com o The Intercept Brasil – ed. 8/09/2019). A posse de Lula na Casa Civil, último recurso do governo Dilma para impedir o golpe, seria cassada horas depois pelo ministro Gilmar Mendes (do Supremo Tribunal Federal) e o resto é história. Nunca saberemos se a habilidade política de Lula seria suficiente para reaglutinar a base política de apoio ao governo Dilma no Congresso Nacional. Aqui, o jornalismo, “inimigo íntimo da democracia”, disparou um míssil certeiro no coração da capenga democracia liberal em processo de re-construção desde 1985.
O segundo momento foi a veiculação dos tweets do general Eduardo Villas Boas, então comandante do Exército, no final da edição do Jornal Nacional, na noite de 4 de abril de 2018, às vésperas da prisão do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (fonte: https://bit.ly/2ot3Szq). Três dias depois, Lula seria preso pela Polícia Federal. Aqui, o jornalismo de guerra (na feliz expressão do Luís Nassif) cumpria um papel decisivo no constrangimento político ao Supremo Tribunal Federal, cuja decisão no dia seguinte poderia livrar Lula da cadeia.
Nos últimos cinco anos, com o advento da chamada Operação Lava-Jato, o consórcio da mídia hegemônica & agentes de Estado (Ministério Público Federal, Judiciário Federal, Polícia Federal, Controladoria Geral da União etc.) produziu um rastro de destruição e sangue na frágil democracia brasileira. Por uma opção de foco, não examino aqui o papel do jornalismo de referência (oligopólio privado de mídia jornalística) neste contexto de inegável desconstrução do que restava do incipiente Estado Democrático de Direito. Já vivemos um Estado de exceção, não há a menor dúvida: um executivo federal delirante e de claro viés autoritário, o Judiciário manietado pela “opinião pública” e os agentes de Estado liderados pela Lava-Jato, a volta da censura nas artes e cultura, a destruição da educação pública (do ensino superior ao fundamental) e da pesquisa científica.
A história do jornalismo brasileiro se apresenta como um tremendo paradoxo: é rica em luta dos homens e mulheres que dignificam a profissão, apurando e escrevendo reportagens memoráveis; por outro lado, é uma ode pusilânime ao autoritarismo, do ponto de vista dos empresários do setor, sempre na vanguarda do atraso, historicamente alinhados com as forças mais conservadoras e retrógradas do país. Em última análise, lamentavelmente, nos momentos decisivos, a imprensa tradicional rifou a democracia, apequenou-se e defendeu abertamente ditaduras e golpes.
É evidente que há muitos e muitas profissionais do jornalismo, na chamada mídia de referência, produzindo conhecimento jornalístico de qualidade, com todo zelo ético, honestidade intelectual, defesa do interesse público. No entanto, na minha modesta avaliação, o jornalismo que queremos está hoje representado por uma nova modalidade, que nasce sendo chamada de “independente” – aqueles projetos que buscam sustentabilidade financeira e independência editorial para praticar o jornalismo de qualidade, sem fins de lucro, na internet, como é o caso da Ponte Jornalismo, da Revista AzMina, Gênero e Número, The Intercept Brasil, Agência Pública, Mídia Ninja, Nexo Jornal, Amazônia Real, Repórter Brasil, Quebrando Tabu, Papo de Homem, Coletivo Catarinas, Portal Desacato, Coletivo Maruim etc. etc. Evoé, jovens à vista!!!
***
Samuel Lima é professor da UFSC e pesquisador do objETHOS.