Independentemente do destino que terá a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que proíbe os militares da ativa das Forças Armadas de ocuparem cargos políticos, o fato dela ter nascido dentro da caserna sinaliza que o Brasil caminha rumo a perfilar-se entre os países de democracia consolidada no mundo. E não no rumo de se tornar uma república de bananas. Eu faço parte de um grupo de velhos repórteres estradeiros que logo nas primeiras semanas de janeiro de 2019, quando o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) começou a cumprir o seu mandato, temia pelo destino da democracia no país. O temor nasceu do fato de que o então presidente, durante as últimas três décadas, cultivou o saudosismo do golpe militar (1964 a 1985). Durante os 21 anos da ditadura, pessoas foram presas, torturadas, mortas e as liberdades dos cidadãos desapareceram. A história iria se repetir com a aliança do então presidente com os saudosistas de 64?
No início do governo Bolsonaro acreditava-se que a barra iria pesar. Porque foram chamados pelo ex-presidente 6 mil oficiais e graduados das Forças Armadas (ativa, reserva e reformados) para participar da administração federal, ocupando cargos de ministros, coordenadores de departamentos e outras funções. No andar da carroça, se descobriu que o que unia Bolsonaro aos militares no governo não era ideologia ou qualquer outro sentimento que não fosse o dinheiro ganho como pagamento pelos cargos que ocupavam. Um decreto do governo possibilitou que os soldos que recebiam nas Forças Armadas, somados aos seus novos salários, pudessem furar o teto do funcionalismo público federal, ao redor de R$ 39 mil. Generais como Braga Netto, que ocupou ministérios e foi candidato a vice na chapa de reeleição de Bolsonaro, ganharam fortunas – há matéria na internet. Essa aliança deu no que deu: as digitais do governo nas 700 mil mortes de brasileiros causadas pela Covid, como mostra o relatório de 1,3 mil páginas da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado da Covid-19 (CPI da Covid). A tentativa de golpe feita pelos bolsonaristas radicalizados acampados na frente do Quartel-General do Exército (QG), em Brasília, (DF), que em 8 de janeiro quebraram tudo que encontram pela frente nos prédios do Congresso, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal (STF), na Praça dos Três Poderes. E, por último, o envolvimento de Bolsonaro com seu ex-ajudante de ordens, tenente-coronel Mauro Cid, na venda ilegal de relógios e joias da União – há matéria na internet.
Nas semanas seguintes ao início das investigações da Polícia Federal (PF) sobre os acontecimentos de 8 de janeiro foi que se começou a ter uma ideia mais exata dos estragos feitos nas Forças Armadas pela influência do ex-presidente. No final de janeiro tomou posse o novo comandante do Exército, general Tomás Paiva, 60 anos. Na sua posse, ele fez um discurso defendendo a Constituição. Foi um discurso legalista – há matérias na internet – e, na ocasião, cometei com um colega que as Forças Armadas começariam a se livrar dos estragos feitos pela influência do ex-presidente. A PEC proibindo os militares da ativa de ocuparem cargos políticos é o início de um processo que tem o objetivo de retirar as Forças Armadas do cenário da política partidária. Ela é assinada pelos ministros da Defesa, José Múcio, e da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino. Eles devem conversar com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e com os parlamentares antes de enviá-la para o Congresso. Não entrei nos detalhes da PEC por dois motivos: o primeiro é que deverá sofrer mudanças durante o processo de votação. Segundo, porque o documento está disponível na internet. Entendo que é mais necessário falarmos sobre outro assunto que envolve as Forças Armadas. Um jovem, quando entra no Exército dos Estados Unidos, tem a possibilidade real de acabar em uma guerra em algum canto do mundo. Nos dias atuais, essa possibilidade praticamente não existe para o recruta no Brasil. Por quê?
Respondendo à pergunta. A guerra no Brasil é outra. As fronteiras brasileiras, em especial com a do Paraguai, se transformaram em refúgio para facções criminosas, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, e o Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, que associados com grupos de criminosos locais montaram um esquema altamente profissional de enviar drogas, armas, explosivos e material de informática para o território nacional. A PF e as polícias civis e militares dos estados não têm gente, equipamentos e serviços de inteligência suficiente para enfrentar esses bandidos sozinhas. Durante a Copa do Mundo no Brasil, em 2014, e nos Jogos Olímpicos, em 2016, as Forças Armadas coordenaram a segurança dos eventos em um trabalho em parceria com as polícias. Lembro o seguinte. As organizações criminosas funcionam como se fossem uma grande empresa multinacional. Elas têm recursos econômicos ilimitados, serviços de inteligência e conseguiram se infiltrar no aparato administrativo dos países. Recentemente tivemos uma prova do que estou falando. No dia 9 de agosto, o candidato a presidente no Equador Fernando Villavicencio foi morto com tiros na cabeça por uma aliança de organizações criminosas que usam os portos daquele país para enviar cocaína para os Estados Unidos e a Europa.
O Equador não foi atacado por outro país, como acontece nas guerras convencionais. Foi atacado por organizações criminosas que querem transformá-lo em um porto seguro para as suas operações. No Brasil existe uma paranoia que vem sendo cultivada há muito tempo, a da ocupação da Floresta Amazônica por forças estrangeiras. Quem está ocupando a floresta não são tropas estrangeiras. São as organizações criminosas, que usam os rios da região para transportar cocaína e estão investindo no garimpo ilegal nas terras indígenas e na derrubada clandestina de árvores – há um vasto material disponível na internet. Trocando em miúdos. A situação de segurança na Floresta Amazônica exige uma ação imediata e organizada do governo. A PEC sinaliza que, em vez de termos um bando de generais usando o seu tempo para conspirar contra o seu país, como está sendo demonstrado pelas investigações da PF sobre os atos terroristas de 8 de janeiro, vamos ter oficiais pensando na questão das organizações criminosas nas fronteiras. Tudo que escrevi não é opinião. Relatei fatos que temos publicado todos os dias nos jornais e baseado na minha experiência de quatro décadas viajando pelos rincões do Brasil e de países vizinhos fazendo reportagens investigativas. A ideia que se tem nos dias atuais é de que os cartéis da cocaína (produtores e distribuidores) e as facções criminosas chegaram a um acordo e resolveram se unir para defender os seus negócios. O jogo mudou.
Reportagem originalmente publicada em “Histórias Mal Contadas”
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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.