Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ai, que terra boa pra se farrear

Texto publicado originalmente no ebook “Observatório da Imprensa: uma antologia da crítica de mídia no Brasil” de 1996 a 2018”, publicado em abril de 2018.
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Da “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, João de Barro e Alberto Ribeiro fizeram uma paródia que a pândega Carmen Miranda cantou numa marchinha de Carnaval, em 1937:

Minha terra tem lourinhas, moreninhas ‘chocolat’
Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá
Oh, que terra boa pra se farrear!

É isso o que veio à cabeça de muito jornalista quando a internet virou terra de ninguém, onde as fake news imperavam, os dados não batiam e as matérias entravavam no campo da dúvida do leitor. “Não sei se é verdade… não sei se o autor é esse mesmo… mas aí vai” — seguiam seu caminho no Facebook, no Twitter, nos e-mails e pelo WhatsApp. Se era ou não era, já tinha ido, e assim nos afogamos/vivemos num mar de incertezas. Foi o que fez o jornalista Farhad Manjoo, do New York Times, passar dois meses se informando exclusivamente por jornais e revistas de papel, com alertas de notícias desativados no celular e sem acesso a redes sociais. Para concluir que a abstinência digital lhe deu mais tempo livre para questionar seu papel de consumidor de conteúdo on-line.

O que é o Observatório da Imprensa? O site é esse questionador, esse fazer pensar, essa pausa nas redes sociais, essa releitura e essa recolocação do leitor no lugar de crítico e filtro daquilo que deglute sem mastigar na mídia. Um site com credibilidade. Esta era a preocupação de Alberto Dines desde o momento em que foi convocado para trabalhar no Jornal do Brasil, no início dos anos 1960, quando decidiu montar um Departamento de Pesquisa com redatores como Fernando Gabeira e Murilo Felisberto — este, que depois foi fazer o Jornal da Tarde. Era uma escola de elite, com a função de abastecer o repórter e produzir matérias de análise. Com esse recurso, o JB foi capaz de enfrentar a TV Globo, fazendo pensar.

Dines sempre usou essa ferramenta na sua fértil profissão de 65 anos ininterruptos — e sempre pagou por isso. Desde os tempos do Diário da Noite, quando, em janeiro de 1961, um grupo de anarquistas portugueses e espanhóis sequestrou o transatlântico Santa Maria para chamar a atenção do mundo para a ditadura salazarista que então persistia. Salazar a Franco eram sobras do fascismo. Os sequestradores não eram da esquerda tradicional. Eram anarquistas. Sequestraram o navio perto da costa brasileira, a cerca de 200 km do Recife. E veio a ordem do Assis Chateaubriand para não dar uma linha nos Diários Associados. “Nunca tinha recebido uma ordem assim”, Dines comentou. “Não poder dar o fato, brigar com a notícia. Fiquei chocado.” Durante dois dias, Dines decidiu dar o assunto na capa, na página central e na última página, abrindo bem as fotos. “Demos um show, mas Chateaubriand tinha o mesmo esquema de Salazar.” No terceiro dia, foi demitido. Mas o alarde do fascismo estava dado.

Aconteceu a mesma coisa quando a censura decretou que ninguém poderia dar manchete sobre a morte de Salvador Allende, no Chile, em 1973. Dines, editor-chefe do Jornal do Brasil, não teve dúvidas e publicou uma página que fez história: uma capa de jornal sem manchete, mas com texto em corpo grande, contando a história toda do “suicídio” de Allende. Três meses depois, foi demitido. Foi este jornalista que ousou fazer no JB um “Diário das ordens da censura”, rebelde, provocador, e que nos anos 1990 decidiu retornar de Portugal, onde havia lançado meia dúzia de revistas da Editora Abril e ocupava o lugar de consultor do prestigiado jornal Expresso.

Voltou ao Brasil para fazer alguma coisa pela imprensa do país dele, onde não seria imigrante, e faria pensar. Num computador simples, numa casinha alugada na Vila Madalena, em São Paulo, que se tornou sede da empresa Jornalistas Associados, criou, em 1996, o Observatório da Imprensa on-line, a exemplo de outro Observatório que já havia criado para os portugueses. Contou com uma equipe de primeira linha, o ex-reitor da Unicamp Carlos Vogt, os jornalistas Mauro Malin e José Carlos Marão, aos quais se juntaram Luiz Egypto e, depois, a assessoria administrativa de Maria Luiza Werle. O projeto deu tão certo que, dois anos depois, Dines estava na televisão, ao vivo, como âncora de um programa semanal de boa audiência nas escolas de Jornalismo e entre o público mais qualificado. O Observatório na TV só foi retirado do ar à sua revelia, dezesseis anos depois.

O Observatório está aí, duas décadas depois. Não pode morrer.

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Norma Couri é jornalista.