Friday, 27 de September de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 3107

O necessário debate sobre a equidade de gênero na indústria cultural

(Imagem de Gordon Johnson por Pixabay)

Com a saída da rede X do Brasil e todas as circunstâncias que permearam esse processo, muito se falou da tão multifacetada “liberdade de expressão”. Esse é um direito cujo exercício tem se tornado cada vez mais limítrofe com uma série de outros direitos, sobretudo através das redes sociais que ao potencializarem o alcance de uma simples “opinião”, tornam-se palco diário para incontáveis polêmicas. Bem aproveitadas, podem ser um excelente ponto de partida para reflexões necessárias e debates urgentes.

E aqui estamos nós, diante de mais uma dessas oportunidades. Sem querer focar na conduta em si de um único indivíduo, mas no pensamento estrutural sintomático que ali foi cristalizado, a declaração “Deus me livre de mulher CEO” proferida recentemente por um empresário brasileiro em suas redes sociais ainda ressoa, pois manifesta um problema paradoxalmente antigo e recorrente.

Ainda que se trate de uma fala solta, num contexto específico, e que já tenha sido publicamente retratada pelo seu autor, essa mensagem chega nas mentes de centenas de mulheres brasileiras que hoje lideram e sustentam negócios nos mais variados setores da economia deste país como mais um peso colocado no calcanhar de quem só quer caminhar em igualdade de condições. A certeza de que o valor da competência feminina é mensurado numa balança antiga e já quebrada pode e vai colocar em risco toda a engrenagem.

E aqui reporto-me imediatamente à minha área de atuação profissional, que identifico como um potencial vetor dessa transformação: a indústria cultural. Um mercado que combina criatividade com a arte, e que carrega em si uma potente ferramenta de transformação de uma nova realidade, bem que poderia ser um solo fértil para germinar essa mudança.

Fazendo um recorte, para ilustrar, do audiovisual brasileiro. De acordo com um estudo realizado pela Agência Nacional de Cinema (Ancine), em parceria com o Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) [1], em 2020, as profissionais mulheres representavam 42,7% da força de trabalho do setor audiovisual e, ainda assim, como minoria em cargos de liderança.

Apenas 25% dos filmes lançados no Brasil entre 2017 e 2019 tinham mulheres como diretoras; 19% das produções tinham roteiristas mulheres, e apenas 35% tinham mulheres na produção executiva. Em 2019, apenas 19% dos filmes brasileiros lançados comercialmente foram dirigidos por diretoras. Nenhuma delas negra. O que nos leva a um patamar ainda crítico dessa desigualdade quando pensamos em mulheres negras, indígenas e trans cuja disparidade é ainda mais gritante.

Outra publicação que também traz dados relevantes e alarmantes é o Anuário Estatístico do Audiovisual Brasileiro publicado pela Ancine em conjunto com o Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA). Em sua edição de 2023 [2,] em uma seção que trata especificamente da participação feminina a partir de dados estatísticos, a conclusão que se chegou foi de que “os dados mais recentes revelam que a desigualdade entre os sexos na distribuição do emprego no setor audiovisual se acentuou em 2022, com a participação feminina caindo para menos de 40% e atingindo o menor nível desde o início da série histórica”.

Segundo dados desse anuário, em 2023, 175 filmes foram dirigidos exclusivamente por homens (64,6%), e 64 exclusivamente por mulheres (23,6%). Os roteiros também seguem dominados por homens: 134 contra 49. Na fotografia, a diferença é ainda maior: 188 homens e 37 mulheres. Por outro lado, as mulheres continuam maioria na direção de arte (80 contra 52) e na produção executiva (101 contra 69). O público dos filmes dirigidos por mulheres seguiu a proporção da respectiva participação na direção, representando 24,2% do público total no ano (894.150 espectadores).

Vale também apontar a disparidade de remuneração entre mulheres e homens, traço marcante não só no setor do entretenimento, mas em todo o mercado de trabalho em geral, e que representa mais um reflexo dessa desigualdade. Basta analisarmos os dados comparativos nesse mesmo anuário da remuneração mensal média por gênero e atividade econômica que iremos verificar a desarmonia para algumas atividades, como a de exibição cinematográfica, que no ano de 2022 foi de uma diferença média de 29,2% a menos para as profissionais mulheres.

O caminho para consertar essa balança contempla, num nível macro, a própria transformação estrutural de toda uma sociedade atravessada por um patriarcado milenar. Sim, parece um horizonte inalcançável, cuja busca nem sempre sabemos por onde começar. Mas se pensarmos no recorte de um setor como o cultural, pode ser exequível pensar num passo de cada vez. Reivindicar a criação e implementação de políticas públicas diretamente direcionadas ao fomento e ao incentivo de projetos e iniciativas que preconizem a atuação de mulheres, certificar-se quanto à adoção de tais medidas em seu próprio âmbito de poder de atuação (com contratações e indicações direcionadas), assim como promover coletivamente uma fiscalização dos critérios de remuneração de cada classe podem ser alguns dos caminhos a ser percorridos.

Todo esse processo é uma construção que passa pela conscientização, fiscalização, organização coletiva e afirmação recíproca com indicação e apoio mútuo.

Como profissional do Direito atuante da área cultural e sócia fundadora de um escritório formado só por advogadas, torna-se por vezes difícil, diante da realidade estrutural de variadas organizações, compreender como essa engrenagem toda funcionaria sem o incontável empenho e atuação de inúmeras mulheres nos mais diversos segmentos. Dar nome e voz a cada uma dessas e de tantas empresas que se integram ao reconhecimento da necessária equidade faz parte da edificação dessa transformação.     

Já que a expressão é livre, que seja também para libertar.

Notas

[1] Disponível em: https://telaviva.com.br/07/03/2023/ha-esperanca-por-equidade-no-audiovisual-brasileiro/ 

[2] Disponível em: https://www.gov.br/ancine/pt-br/oca/publicacoes/arquivos.pdf/anuario-estatistico-2023.pdf

***

Carol Bassin é Sócia Fundadora do escritório Bassin Advocacia Cultural, especializado em propriedade intelectual, legislação de incentivo e proteção autoral, com experiência de atuação no suporte jurídico e estratégico ao mercado de produção cultural, mídias digitais e negociações envolvendo licenciamento de direitos. Atua como Consultora Jurídica e Business Affair junto ao agenciamento de talentos e é Membro Efetivo da Comissão de Direitos Autorais, Direitos Imateriais e Entretenimento da OAB/RJ