A defesa da Ucrânia não é universal? A imprensa francesa e europeia tem salientado periodicamente a discrepância quanto a isso entre o Ocidente e o Extremo Ocidente. Excepcionalmente, alguns meios de comunicação, ao dirigirem o olhar para a América Latina, tem se perguntado: da Cidade do México a Buenos Aires, por que é que há tão pouco apoio para condenar a agressão russa?
A contagem dos “polegares latino-americanos para baixo” na ONU é considerada satisfatória, de um ponto de vista europeu e norte-americano. No entanto, as explicações dos votos, quando ocorrem, nem tanto. Várias respostas têm sido adaptadas, aqui e ali formando um mosaico, para tentar tornar compreensível, aos olhos de Paris ou Madrid, o inexplicável. Para alguns, finalmente, apenas regimes autocráticos evitaram romper com Moscou. Para outros, só a esquerda é culpada de tal falta de solidariedade democrática.
Uma peça desse mosaico pouco observada, o estado da opinião pública, merece ser acrescentada ao dossiê, a fim de se compreender esse contexto. Tomemos aleatoriamente um dia “D”, quarta-feira 30 de março, por exemplo, ou seja, quase cinco semanas após o início da invasão da Ucrânia pelas tropas russas. Qual é a manchete dos jornais latino-americanos nesse dia? É verdade que a imprensa já não está mais disparando notícias como anteriormente, antes das redes sociais. É verdade que na maioria dos casos ela tem sido bastante unilateral, expressando principalmente as opiniões dos seus proprietários e não as da maioria. Mas finalmente, embora reconhecendo a relevância destes limites, há que se admitir que a mídia é um termômetro do estado de espírito público, porque exprime preocupações coletivas e reflete as narrativas dominantes, de um país a outro.
A seguir, iremos propor, país após país, por ordem alfabética, de quase todos, a leitura das primeiras páginas dos jornais diários nacionais de referência nessa região. “Clarin”, um grande jornal argentino, com a maior circulação na América Latina, no dia 30 de março, trazia duas manchetes: uma tratava das mobilizações sociais e a outra das consequências para os pensionistas do recente acordo feito por Buenos Aires com o FMI. “El Diario”, o decano da imprensa boliviana, trouxe em sua primeira página questões sociais: “Não é o momento para um duplo décimo terceiro mês ou um aumento salarial” de acordo com a federação patronal.
No Brasil, a “Folha de S. Paulo” preferiu colocar um único artigo em toda a sua primeira página: “Dois terços dos brasileiros têm medo de sair à noite nas cidades”. “El Mercurio” em Santiago do Chile, com uma fotografia colorida, destacou a eliminação do “Chile do Campeonato Mundial de futebol”. “El Tiempo”, um jornal diário colombiano publicado em Bogotá, também trouxe como manchete informação equivalente à de seu colega chileno: “Colômbia eliminada do Campeonato Mundial do Qatar”. “La Nación”, na Costa Rica, destacou um escândalo financeiro e político local, dizendo: “Pilar Cisneros: Não sabia do fundo paralelo manipulado por Sofía Agûero”. “Granma”, órgão oficial do Partido Comunista Cubano, deu prioridade a um evento político: “Cuba iluminada pela sua juventude”.
O grande diário equatoriano, “El Comercio”, também se concentrou na temática esportiva: “O monumental empate do Equador contra a Argentina”. O tradicional “El Excelsior”, comercializado na capital mexicana, coloca uma fotografia colorida do Presidente da República no topo de sua primeira página, com o título: “Conferência de imprensa matinal, López Obrador, 30 de março de 2022″. O jornal “La Estrella”, no Panamá, deu esse lugar central de suas páginas a um compromisso social “entre trabalhadores e empresários”. O “ABC”, um jornal diário paraguaio, colocou duas notícias opostas uma à outra: uma é nacional e fala de tráfico de combustíveis, a outra faz referência à guerra, com o título “Na guerra Ucrânia-Rússia, o bombardeamento pelo exército de Vladimir Putin não para”.
Dois artigos políticos partilham a maior parte da primeira página do “El Comercio”, um jornal em Lima, no Peru. O primeiro trata “da oposição que disporia de votos suficientes para retirar o Ministro da Saúde do cargo”, o outro, o editorial, afirma “Um parlamento tão medíocre como o governo de Castillo”. “Listin Diario”, na República Dominicana, celebra um evento patriótico em toda a sua primeira página, dizendo que o presidente da República “Abinader participa das cerimônias comemorativas da Batalha de 30 de março”. O seu homólogo uruguaio, “El País”, reservou espaço para um acidente climático: “No dia seguinte, Mercedes acordou para trabalhar arduamente e recomeçar a viver após a tempestade”. Na Venezuela, “L’Universal” escolheu concentrar-se na guerra na Ucrânia: “Os bombardeamentos russos continuam, apesar das perspectivas de desescalada da guerra na Ucrânia”.
Estes excertos com as manchetes, entregues crus e não selecionados, podem ser lidos de diferentes maneiras. De qualquer forma, revelam uma distância multifacetada. Distância geográfica de um conflito que se verifica a mais de 10.000 quilômetros. Distância decisória, uma vez que os latino-americanos estão desligados de todos os cenários pós-conflito, desde os mais belicosos até os mais diplomáticos. Enquanto isso, a vida continua, do México ao Chile, com as suas agendas locais, políticas, sociais e desportivas a serem noticiadas.
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Texto publicado originalmente em francês, em 31 de março de 2022, na seção ‘Analyses’, no site Nouveaux Espaces Latinos, Paris/França, com o título original “Les médias latino américains après un mois de guerre en Ukraine”. Disponível em: https://www.iris-france.org/166361-les-medias-latino-americains-apres-un-mois-de-guerre-en-ukraine/. Tradução de Andrei Cezar da Silva e Luzmara Curcino.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.