No mundo todo, e em todas as línguas, o tom triunfalista caracteriza as reportagens de saúde com foco nas inovações. Mas nas palestras e conversas privadas entre jornalistas especializados, o tom é sempre outro. A preocupação gira em torno do público iludido com os nossos exageros. A modo de autocrítica, todo mundo repete o bordão que, para ter um medicamento, é preciso pesquisar 1.000.000 de moléculas e que “medicamento promissor” teria que ser apagado dos dicionários. Nas sessões catárticas de mea culpa, os jornalistas de saúde nos preocupamos com as ilusões que geramos do outro lado, o dos doentes, familiares ou amigos de pacientes consumidores daquela informação.
Um olhar diferente é mostrado no artigo “Otimismo em um mar de incertezas: a cobertura jornalística sobre a pesquisa de novos medicamentos no Brasil”, assinado por Carlos Henrique Fioravanti e César Maschio Fioravanti no Journal of Science Communication. A dupla avalia a cobertura jornalística de 40 compostos que, quando estavam sendo desenvolvidos no Brasil, foram apresentados como fármacos promissores. E o fizeram em um período extenso o suficiente para conhecer se as promessas feitas em 214 matérias jornalísticas foram cumpridas. “Após 27 anos, apesar de jornalistas e cientistas terem afirmado que todos os compostos se tornariam medicamentos em poucos anos, apenas dois completaram os testes de avaliação e foram aprovados para comercialização” concluem os pesquisadores. E se parece pouco que apenas duas moléculas (5% do total de 40 que jornalistas e cientistas asseguraram que se tornariam medicamentos em poucos anos) cumpriram com sucesso todas as etapas de testes e desenvolvimento, é preciso saber que a realidade é ainda pior: a pesquisa com um deles parou um ano depois de ser anunciada e o outro obteve a aprovação regulamentar, mas ainda não é produzido. “Embora meritórias por expressarem as possibilidades de cooperação entre centros de pesquisa públicos e empresas privadas, estas duas pesquisas são de baixo conteúdo inovador”, analisam os autores.
Mau jornalismo ou baixa qualidade na ciência?
Os autores colocaram o foco no jornalismo científico escrito. Analisaram publicações da Folha de S.Paulo, o Estado de São Paulo e a revista FAPESP, todas com equipes especializadas em ciência. As reportagens das três publicações retrataram essencialmente os mesmos compostos, que representavam apenas o ponto de partida de candidatos a medicamentos, mas nos textos os condicionais eram raros: apenas cinco reportagens evidenciaram as incertezas sobre a realização e o êxito dos testes clínicos.
Os autores destacam que as três publicações enfatizaram o suposto poder terapêutico sem considerar as barreiras que teriam de superar para se tornarem medicamentos. “Apenas 10 das 214 matérias reuniram cientistas e instituições em contextos mais amplos, destacando as dificuldades para obter financiamento, estabelecer colaborações entre centros de pesquisa e empresas farmacêuticas e realizar ensaios clínicos no Brasil, os obstáculos legais à inovação, os atrasos nos testes de avaliação clínica da molécula e outros imprevistos, como as parcerias desfeitas.”
Eles consideram que as conexões entre pesquisadores, laboratórios, universidades, empresas e agências de financiamento e de regulação deveriam ser verificadas pelos repórteres, não apenas presumidas. “Os jornalistas poderiam examinar os obstáculos, verificando se existe financiamento, laboratórios adequados e equipes para a pesquisa avançar, se o princípio ativo foi isolado, se a toxicidade foi avaliada, quem produzirá o composto em quantidade suficiente para os testes de avaliação, se a instituição que abriga a pesquisa está preparada para fazer parcerias com empresas e quem estaria produzindo fármacos semelhantes.”
O trabalho tem sem dúvida o olhar minucioso do quem conhece bem o outro lado do balcão. Um dos autores, Cesar Mascio Fioravanti é especialista em investigação e desenvolvimento de drogas. O outro é o jornalista Carlos Henrique Fioravanti, que além de reconhecido entre os pares pelo seu trabalho na própria revista Pesquisa Fapesp, é autor do livro “A molécula mágica” (Ed. Manole 2016). A modo de romance, Fioravanti descreve um trabalho investigativo de vinte anos sobre a luta de cientistas brasileiros para desenvolver um medicamento contra o câncer. “Este estudo se liga ao livro”- esclareceu Carlos Henrique ao Observatório da Imprensa por email. “Queria saber que outras moléculas avançam com dificuldade, ou mesmo não avançam.”
A pesquisa, acrescenta Carlos Henrique, foi autofinanciada. Foi necessário complementar a informação indexada em bancos de dados com a comunicação pessoal com os pesquisadores responsáveis. “As conversas indicaram as dificuldades do trabalho, as estratégias adotadas para superá-las, e as normalmente escassas possibilidades de interação com as empresas farmacêuticas”, esclarece.
Interesse público. Será que que para atrair o interesse do público estamos errando a forma de noticiar? Será que o que é de interesse público, e merece ser divulgado, não é o fim do caminho, mas o percurso, as dificuldades para obter financiamento, os obstáculos à inovação, os empecilhos para estabelecer colaborações entre centros de pesquisa e empresas, os impedimentos que se enfrentam para realizar ensaios clínicos no Brasil?
Os autores acham que sim e comparam a estratégia enganosa de comunicação que envolve cientistas, jornalistas e empresários à seguida pelos políticos “por apresentarem decisões espetaculares, geralmente sem efeito ou continuidade prática, que valorizam principalmente os interesses pessoais ou institucionais.”
Aos jornalistas eles propõem outra via: o exercício da moderação, ampliar os pontos de vista, se preparar melhor para interrogar, lembrando que a realidade é complexa e a incerteza alta.
O caminho não é fácil. A mídia trabalha com verdades científicas pontuais, que podem ou não ser representativas do futuro nem, aliás, do momento. Mas é provável que deixar de usar as palavras “medicamento promissor”, “medicamento inovador” e utilizar, no lugar, “moléculas biologicamente ativas” ou similares poderia significar um custo alto de perda de leitura. No falsamente infinito mundo digital, a limitação hoje é o tempo de atenção, portanto, a autocensura deveria ser a melhor decisão?
As mensagens exageradas, cada vez mais efêmeras, geram expectativas inalcançáveis. Um bom comunicador é reconhecido pela sua capacidade de expor de forma atraente, economizar dados sem deixar de lado o importante, mas também por reconhecer o impacto de cada uma de suas mensagens. Publicar uma promessa de sucesso é mais fácil do que uma incerteza, mais do que isso, os repórteres não são treinados para lidar com a incerteza.
O resultado está à vista neste excelente estudo brasileiro: não noticiamos os fatos pelo que são, mas pelo que gostaríamos que fossem. Os resultados evidenciam a necessidade de uma revisão da maneira que fazemos o nosso trabalho. Porque se continuar assim, é possível que os jornalistas de ciência não consigamos cumprir uma parte importante da nossa missão: transmitir cultura científica.
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Roxana Tabakman é jornalista científica, autora do livro A saúde na mídia, medicina para jornalistas, jornalismo para médicos (Ed.Summus) e membro da Rede Brasileira de Jornalismo e Comunicação Científica RBJCC.