Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

“Aedes brasilis”

Segundo o dicionarista Antônio Houaiss, entende-se como desabafo a “manifestação de sentimentos e pensamentos íntimos”, significando também o “desafogo” ou a “desopressão”. Desabafar representa abrir o jogo, isto é, dizer o que sentimos ou pensamos em relação a algo ou alguém. Desse modo, compreende-se melhor a intenção da coluna do Correio Braziliense intitulada “Desabafo”.

Ali, encontram-se publicadas as declarações do público a respeito das grandes questões que afetam o seu dia-a-dia. Elogios e queixas costumam povoar aquele espaço jornalístico, cujo bordão apresenta o seguinte conforto: “Pode até não mudar a situação, mas altera sua disposição”. Na edição do periódico distrital datado de 02/02/2016, José Bonifácio R. Sousa, morador do Cruzeiro Novo, DF, faz o seguinte questionamento: “Em um país que é dominado por mosquitos, o que se pode esperar dele, principalmente dos seus governantes?”

Como contexto para a pertinente reclamação do leitor, destaca-se a lamentável notícia de que a Organização Mundial de Saúde (OMS) teme explosão global de microcefalia, atribuída ao vírus transmitido pelo mosquito aedes aegypti, sendo o Brasil o país com o maior número de casos da doença. Embutida na indagação do reclamante também se apresenta a justificada insatisfação frente aos constantes casos de corrupção que vêm contaminando nossa cultura política.

A democracia, conquista política da civilização, exige a limitação do poder e o permanente monitoramento de seu exercício, para evitar abusos e desvios, de modo a garantir que as decisões, na república, sejam norteadas pelo interesse coletivo, e que os recursos decorrentes da compulsória contribuição de cada cidadão sejam corretamente utilizados. O Brasil se encontra em singular momento histórico, marcado por crise fincada num tripé ético, econômico e político. Razão de sobra tem Samuel Rosa e Chico Amaral, quando ressaltaram, na canção Esmola (1994), que “se o país não for pra cada um/pode estar certo/não vai ser pra nenhum”.

Em artigo intitulado “A Saúde da gestão pública” (Correio Braziliense, de 02/02/2016), Cristovam Buarque foi certeiro ao identificar a principal razão da crise da saúde pública no Brasil. Adverte o professor emérito da UnB e senador pelo PDT-DF: “A saúde está doente devido à doença da política, que define os rumos e a estrutura do sistema de saúde. […]

O sistema de saúde é um pequeno elemento de um sistema guiado por interesses da política menor, sem compromissos públicos, nem concepção inteligente. É como se o sistema social sofresse de microcefalia porque perdemos a batalha da gestão das coisas públicas – e não foi para o aedes aegypti. Foi para o aedes brasilis. O problema não é de gestão da saúde pública, mas de saúde da gestão pública: saúde moral, política e técnica.”

Face ao exposto, cercadas de sabedoria cristalina estão as palavras de Lúcia Willadino Braga, presidente da Rede Sarah, expressas em entrevista concedida ao Correio Braziliense, de 01/11/2015: “A saúde só vai melhorar se a educação mudar. Minha sensação é de que o país precisa investir em educação. Com educação, você já melhora muitíssimo o nível de saúde. Uma coisa que já discuti com alguns governos: por que não se coloca no fim do ensino médio disciplinas de enfermagem, de medicina? Com um ano de formação mínima, haveria muito menos procura de pronto-socorros. Haveria muito mais ações preventivas. […] Saúde e educação são áreas que não deveriam ter influência política. Se fosse ministra da Saúde, teria de brigar muito. Não iriam me querer em três meses. Logo me dariam alta. Temos que viver para a saúde e não sobreviver da doença.”

A educação é o melhor remédio

Faz-se necessário, portanto, incentivar o empenho educativo de cada pessoa para cuidar melhor da saúde individual e coletiva. Trata-se da benéfica “sauducação”, conforme o neologismo destacado por Cristovam Buarque. A ideia de saúde como qualidade de vida condicionada por vários fatores, tais como: paz, abrigo, alimentação, renda, educação, recursos econômicos, ecossistema estável, recursos sustentáveis, equidade e justiça social, surgiu com evidência irretocável na Carta de Ottawa, em 1986. Nela, a saúde é considerada como um conceito positivo, para o qual se fazem necessários recursos pessoais, investimentos sociais e capacidade física.

Assim, para se ter saúde, a responsabilidade vai além do setor específico, pois exige estilo de vida saudável para atingir o bem-estar. Sob este prisma, as comunidades e os indivíduos precisam aprender a cuidar da sua saúde, para então melhorá-la. Tal fato deve demandar dos indivíduos e dos grupos a capacidade de identificar os seus problemas, satisfazer as suas necessidades, modificar ou adaptar-se ao meio e, consequentemente, atingir a qualidade de vida. Convém lembrar sempre do lema proferido, com entusiasmo, pelo querido personagem da Escolinha do Professor Raimundo Paulo Cintura: “Saúde é o que interessa, o resto não tem pressa!”

A OMS define a saúde como um completo bem-estar físico, social e mental e não apenas ausência de doenças, conceito esse que evoluiu para o resultado das condições de alimentação, moradia, educação, meio ambiente, trabalho e renda, transporte, lazer, liberdade e, principalmente, acesso aos serviços de saúde. Nesse sentido, conforme expressa a Constituição Federal de 1988, direito à saúde significa a garantia, pelo Estado, de condições dignas de vida e de acesso universal e igualitário às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde, em todos os seus níveis, a todos os habitantes do território nacional, levando ao desenvolvimento pleno do ser humano em sua integridade. Para tanto, não podemos mais aceitar como normal o seguinte impasse cotidiano, alertado por Renato Russo, em “Que país é este?” (1978/1987): “Nas favelas, no Senado/Sujeira pra todo lado/Ninguém respeita a Constituição/Mas todos acreditam no futuro da nação.”

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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor universitário, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários