A história já é conhecida por todos. A pílula “milagrosa” contra o câncer era distribuída inexplicavelmente pela nossa melhor universidade, a loucura um dia parou, as pessoas choraram em frente às câmeras e logo seus promotores conseguiram apoio de juízes e políticos ineptos. Diante da repercussão, os ministérios de Ciência, Tecnologia e Inovação e Saúde acharam dinheiro que ninguém sabia que tinham e estão promovendo pesquisas. A parte da sociedade que está bem informada já compartilha os primeiros resultados.
A fosfoetanolamina não cura: as primeiras evidências mostram não apenas que não funciona, como provavelmente aumentaria os processos tumorais. E nem sequer é fosfoetanolamina, acrescentam os relatórios. As cápsulas que se distribuem contêm apenas 32% de essa substância e o resto são outros ingredientes. Como se à República faltassem problemas e a Anvisa não existisse, o último capítulo desta nefasta história é um projeto de lei que prevê a livre produção e comercialização da substância. Ou seja, a decisão de o que fazer com os pacientes com câncer aguarda agora o posicionamento da presidente Dilma.
Nesta questão dolorosa, a população está unida pela sensação de vergonha. Mas ao repassar os comentários dos leitores, as matérias, os vídeos e os posts fica claro que essa sensação não acomete a todos pelas mesmas causas. Uma parte dos brasileiros está chocada pela postura de líderes e governantes que, apesar das evidências em contrário , ainda defendem a pílula como fonte de esperança. Outros, pelo contrário, ainda acreditam nos seus impulsores e veem no assunto todo uma conspiração da indústria farmacêutica internacional.
Depois de seguir durante meses o assunto na mídia, abrigo a sensação de que, de maneira geral, a imprensa entende bem a situação científica e informa corretamente, porem está fazendo algo errado. Se o objetivo é tirar dos enganados a bolha de esperança que lhes turva a visão, não tenho certeza de que o esteja conseguindo.
As estratégias dos programas de entretenimento
Quando começou a confusão, os blogueiros e vlogueiros científicos saíram na frente. Pirula, um dos mais conhecidos divulgadores científicos do YouTube, fez um vídeo muito claro que dava resposta a muitas das perguntas que as pessoas faziam. Mas logo teve que fazer uma nova filmagem para responder questões do público que para outros já eram óbvias . Durante longos meses, ele e outros cientistas e comunicadores de ciência continuaram dando show de bola não apenas nas análises técnicas, como nas leituras sociais. Tomo como exemplo Maurício Tuffani, que em seu blog na Folha descreveu a situação como “um lamentável exemplo da corrupção da democracia por meio da demagogia” , ou Carlos Orsi, que lamentou que o relatório venha a ser “ignorado pelas vítimas do verdadeiro culto que se formou em torno da substância e pelos abutres, de diferentes plumagens, que esperam transformar o desespero dos doentes em votos ou dinheiro. Destaco aqui também o trabalho minucioso de uma mulher, Natalia Pasternak Taschner, que no blog “Café na bancada” faz 18 perguntas claras que ainda não têm resposta .
“Enquanto essas questões permanecerem sem reposta, não há como saber se a motivação do grupo do IQSC (Instituto de Química de São Carlos) foi messiânica, ingênua ou de má-fé. Entretanto, é no mínimo curioso que até agora ninguém tenha se interessado em respondê-las e dar uma satisfação para a sociedade”, conclui Natalia.
A mídia escrita, de forma geral, ficou também do lado da ciência. Com menos avaliação própria e muita menos profundidade do que os blogueiros, a imprensa limitou-se a apresentar as diferentes opiniões médicas e científicas, cumprindo o seu rito de divulgar todos os fatos e deixando quase sempre bem claro que frágil era o peso das evidências que lhes eram oferecidas . Essa visão crítica foi aumentando com o tempo. Então, se todo mundo fala que a fosfoetanolamina contra o câncer é uma grande mentira, por que o assunto ainda não morreu? Há muitas explicações possíveis. A única certeza é que a culpa não é do público que gosta de ser enganado.
Uma possibilidade é que talvez os que colocam os dedos no teclado fiquem longe demais das estratégias dos programas de entretenimento (Ratinho e outros) que apoiam a fosfo. Informam sem tocar as emoções, não se preocupam em procurar histórias verdadeiras que apoiem as ideias que estão difundindo. Em palavras mais afiadas, as matérias que mostram que as cápsulas da USP não servem para nada são blocos de gelo. Cadê os mortos da fosfoetanolamina?
O jornalismo científico deveria mudar
Contrapor às crenças irracionais as mesmas ferramentas que são usadas para divulgá-las (concretamente, mostrar depoimentos pessoais) é um caminho pouco explorado. Mas funcionou, pelo menos parcialmente, no caso de Julian Rodriguez, que foi mencionado neste site na matéria “Justiça para Mario Rodriguez” . No mês passado, o pai de Mario, cujo caso é apresentado como de uma vítima das pseudociências, teve uma pequena alegria: o processo ao “médico alternativo” parcialmente responsável da sua morte foi reaberto.
O jornal El País titulou a matéria “A mi hijo lo ha matado la incultura cientifica” mas, quase uma advertência à imprensa para melhorar o conhecimento científico da população. É verdade: hoje, mais do que nunca, a mídia precisa explicar em palavras claras e simples os antecedentes históricos de como seria a nossa vida se não existissem regras definidas na experimentação e uso de substâncias medicamentosas. Mas a educação científica pode não ser suficiente para acabar com o problema.
Talvez tenha chegado a hora de uma autocrítica: perguntar-nos se a imprensa crítica à fosfoetanolamina não está contando a história incompleta. Não há dúvida que divulgar assuntos médicos sem ouvir a voz dos pacientes é contar apenas uma parte; porém, às vezes, não parecemos conscientes das consequências da deficiência. Não é preciso ter tido uma educação menos privilegiada para cair na armadilha de acreditar na mulher que fala em frente à câmera que sem a fosfoetanolamina não estaria viva para contar a história. Isso é simplesmente possível com uma mente menos focada em dados laboratoriais e mais em histórias, com a empatia mais desenvolvida do que o ceticismo. O hábito da imprensa de desatender essas sensibilidades pessoais poderia estar afastando o nosso público da compreensão total da realidade que tentamos divulgar.
Há muita polêmica no jornalismo científico, mas pertenço ao grupo que considera que deveriam se fazer mudanças profundas porque estamos fracassando. Na luta contra os “milagres”, são muitas as vezes que não conseguimos mostrar o nosso lado. Neste contexto, é interessante a iniciativa de um engenheiro do nome Tim Farley que utiliza histórias humanas para promover o pensamento crítico.
Uma realidade que é triste, mas não é visível
No site whatstheharm.net (Qualeodano.net, em tradução livre), Farley divulga com nome, foto e cidade casos reais de pessoas que morreram por “acreditar” errado. Provavelmente por se tratar de um esforço individual de jornalismo-cidadão sem objetivo de lucro, é bastante incompleto, mas vale pela ideia. Inclui desde vítimas de ervas chinesas supostamente inofensivas até pessoas que, no momento inadequado, ouviram conselhos inadequados (de homeopatas que na hora certa não souberam dizer “vá logo para um hospital”). Para mostrar até onde podem chegar as consequências de acreditar em inverdades, Tim Farley inclui entre as vítimas 365 mil sul-africanos: o número se baseia numa pesquisa da Universidade de Harvard referente a um fato histórico. No ano 2000, o presidente Thabo Mbeki ainda não “acreditava” que o vírus HIV era a causa da Aids e por cinco anos o país inteiro manteve doentes sem tratamento em consequência do engano em que caiu Mbeki.
As pessoas que caíram na promessa enganosa da fosfoetanolamina não devem ser desprezadas. Muito pelo contrário, devem ser procuradas para a cobertura jornalística completa, para mostrar as vidas por detrás do fracasso que mostra a ciência. Entrevistar os familiares de alguns dos milhares que morreram “apesar da fosfoetanolamina” exige tempo, sensibilidade e paciência. Nem sempre é fácil convencer indecisos, temerosos e fóbicos a divulgarem à imprensa sua intimidade, especialmente se foram enganados. Mas eles têm que entender que é um serviço importante para a comunidade porque mesmo sem terem um final feliz de esperança para contar, podem ajudar a outros a evitar situações de dor ainda mais profundas por causa do engano.
Dificilmente conseguimos informar bem sobre assuntos de saúde e doença se antes não tomamos consciência da fragilidade humana. Todas as pessoas querem saber, mas há muitos para quem as verdades ficam inacessíveis porque, como os daltônicos que não conhecem as cores, têm dificuldade para processar a informação de forma puramente analítica. Para essas pessoas pode ser difícil entender que os efeitos podem não ser reais, mas uma simples miragem provocada por situações aleatórias.
Para fazer um bom jornalismo de assuntos médicos complexos, como o da fosfoetanolamina, não basta ir pelo caminho fácil de amplificar o que mostram os especialistas. Seria bom a imprensa se esforçar mais, não apenas para dar a informação correta, mas para mostrar uma realidade que é triste, mas que, infelizmente, não é visível para todo mundo.
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Roxana Tabakman é bióloga e jornalista. É autora de A saúde na mídia – Medicina para jornalistas, jornalismo para médicos, Ed. Summus