Uma frase define o que foram os tempos em torno de 1968, cujos 40 anos começaram a ser comemorados no mês passado, o mais longo dos maios o daquele ano – que não terminou, na frase feliz que Zuenir Ventura cunhou retrospectivamente. Quem disse essa frase lapidar foi um militar que nasceu no Acre e se formou no Pará, tornando-se uma das mais importantes personalidades de todo período republicano no Estado adotivo. ‘Às favas os escrúpulos de consciência’, trombeteou o então ministro do Trabalho, coronel Jarbas Gonçalves Passarinho, do alto dos seus 48 anos na época.
Na longa mesa escura da sala de jantar do Palácio Laranjeiras, no Rio de Janeiro, em torno da qual se reunia o plenário do Conselho de Segurança Nacional, o ex-governador paraense pronunciou, naquele 13 de dezembro de 1968, a senha definitiva para o rito de passagem da ditadura envergonhada à ditadura escancarada, conforme outra definição post-facto dada por outro jornalista, Elio Gaspari.
Alguns dos integrantes do CSN ainda estavam atados a alguns escrúpulos de consciência, que os mantinham constrangidos diante de um ato que se assumia por escrito como ‘ditadura pura e simples’, conforme também disse Passarinho. A prova do delito estava ali, no papel, no qual teriam que consignar suas assinaturas. Pelo menos essas pessoas sabiam que a história não esperaria para julgá-las: o julgamento já estava contido no próprio texto do papel nefando, o Ato Institucional número 5. E por mais que a seguir praticassem as obras mais fecundas, aquele momento era de vilania para com a nação brasileira e sua história. Passarinho as tirou do estado de hesitação e as lançou, de vez, nos anos de chumbo.
Trem da história
Mas não era uma frase simples, meramente bajulatória, dita sem reflexão, apenas para lançar a ordem de ataque à democracia e servir de código para que se abrissem os porões do regime e deles emergissem os guerreiros encapsulados nos ‘bolsões sinceros, mas radicais’, em outra definição de especialista nessas entranhas, o general (e futuro presidente da República) Ernesto Geisel. Ou a ‘tigrada’, segundo a fraseologia de Delfim Neto, um mestre da prestidigitação, ainda fazendo graça (à custa da desgraça alheia, of course) aos 80 anos, recém-comemorados.
A frase sufocava um halo machadiano, que devia perpassar a memória de um leitor do bruxo do Cosme Velho (o bruxo seguinte do bairro, mas com outro perfil, décadas depois, manipularia tessituras midiáticas globais: Roberto Marinho). Qualquer leitor de Machado de Assis guarda dele frases eternas, como ‘ao vencedor, as batatas’; ou a shakespeareana dúvida ‘mudou o Natal ou mudei eu?’. Os militares da reação foram os vencedores nos idos de março de 1964. Era a primeira surpresa, desmoralizando o ‘esquema militar’ do ‘general do povo’, um deles, promovidos bionicamente por João Goulart. Argemiro Assis Brasil garantia proteção absoluta ao presidente populista com a fantasia da intocabilidade. Tudo isso desmoronou a partir do movimento de tropas de Minas por um figurante secundário no enredo, o general Olímpio Mourão Filho, autodenominado ‘vaca fardada’. Sem esperar pelos ‘cabeças’, ele mugiu e tossiu, liberando o que estava comprimido nos quartéis.
A segunda surpresa foi que nas ruas, a partir daquele maio de 1968, havia um furacão humano a se atribuir força inexorável no rumo de uma revolução comandada por uma classe social transitória, a dos estudantes. Sem vinculação orgânica a nada, senão às suas convicções, os estudantes desempenhariam a missão salvífica que enganosamente Karl Marx colocara nas mãos dos operários, àquele momento interessados em penetrar no paraíso do consumo, como mostrou o filme famoso de Élio Petri, com o ator cult daqueles tempos, Gian Maria Volonté.
Os operários se haviam tornado a outra face da moeda em curso no mercado. Não podiam mais derrubar as estruturas da opressão, queriam apenas encontrar seu lugar nessa nova catedral secular. Todo poder à imaginação, à libertação, exigia um anarquismo curtido nas ruas, sem muita retaguarda intelectual, uma ‘força da natureza’, para usar conceito neo-rousseauniano (com perdão do notável filósofo). A não-classe acabaria com todas as classes. Quem quisesse que embarcasse no trem na nova história. O comboio já desatracara da estação, divisava o mineiro Milton Nascimento, ainda então o Bituca.
Camisa-de-força
Tolerância tem hora para acabar, decidiram os senhores da ordem, contemplando o que, para eles, se apresentava como caos, enquanto, para seus promotores, era a onda de novidade trazida à praia dos homens pelo mar da aventura. Os vencedores não podiam receber batatas como troféus, nem ficar na retaguarda de uma reforma que queriam conduzir à unha, conforme os planos que conceberam e maturaram em seus laboratórios doutrinários, principalmente na Escola Superior de Guerra, nossa Sorbonne castrense, e depois espalharam por gravidade feroz entre unidades operacionais, como o DOI-Codi.
Os líderes do primeiro governo militar, gravitando em torno do marechal Humberto de Alencar Castello Branco, cultivavam seus escrúpulos. Muitos deles não tinham ido ao combate nos campos da Itália para defender a democracia contra o fascismo? Não foram eles que trouxeram a nova (e efêmera) democracia no alforje, tornando inviável a permanência do ‘pai dos pobres’ à frente do seu Estado Novo corporativista, que se inspirou nos códigos fascistas de Mussolini? Como, agora, iam emprestar seu nome a um regime tão fascista quanto o que contribuíram para destruir?
A situação brasileira exige mais acuidade para ser entendida do que permite a ortodoxia dos códigos de interpretação disponíveis no almoxarifado de idéias. A ‘classe’ estudantil é transitória na sua materialidade humana, mas os militares se unificam numa instituição permanente, que independe da circulação de pessoas. Infelizmente para todos, inclusive para os militares não-militaristas, essa instituição, que devia ser profissional, técnica, se transformou em partido político, o único perene e o mais forte de todos.
Um dos erros mais desastrosos da elite brasileira foi não ter se empenhado em desviar os anseios das cada vez mais numerosas classes médias para um partido com o qual elas se identificassem e para ele drenassem seu impulso de participação – e de intervenção também, no sentido de ruptura – na vida política do país.
No império, o imperador exerceu o poder moderador, mas esse poder só teve significado porque se baseava não no cajado do rei, mas no bastão de comando do chefe militar. O marechal Deodoro da Fonseca dormiu como amigo fiel de D. Pedro II e amanheceu como o condestável da República. O povo viu a mutação madrugadora ‘bestificado’, conforme observou outro jornalista, Aristides Lobo. A partir daí os centuriões não parariam de lançar golpes de mão para corrigir os rumos da nação, com o instrumento moralizador mais intimidatório: suas espadas. Não há pedagogia que resista a esse corretivo, de efeito traumático. O autoritarismo se tornou uma das maiores características do Brasil, do seu inconsciente coletivo, conforme a elucubração feita por J. O. Meira Pena no delirante Em Berço Esplêndido.
A esquerda, que nunca gostou de perder (e quem gosta?), estigmatizou os adversários como representantes da nefanda direita (e quem gosta de ser considerado da direita?). Inteligente como é, a esquerda sempre ganha no terreno das idéias e perde no campo (e no tapetão). Ganha, mas não leva – exceto doloridos cascudos. Acabou sendo vítima de suas boutades – criativas, sim, mas nem sempre (ou raramente) corretas. Os militares passaram a ser desdenhados como milicos, macacos. Foram colocados numa camisa-de-força conceitual que se tornou fonte de incompreensões e de distorções, muitas vezes fatais.
Processos irracionais
O militar é, por natureza, conservador. O peso desse elemento se acentua quando a instituição age não só como corpo profissional, mas também como partido político, como é o caso no Brasil. E ainda mais quando os vizinhos civis desse espectro ideológico partilham o mesmo conservadorismo. Só que os líderes civis das rupturas havidas no país até 1964 sempre adotaram um conservadorismo mais matizado do que seus aliados da caserna. Depois do rompimento, comandaram a conciliação. Freqüentemente, com os inimigos da véspera.
Sucessivos chefes militares se sentiram logrados na partilha que se seguiu aos típicos ‘pronunciamentos’ latino-americanos, a vergastar constantemente a plantinha da democracia, que jamais conseguiu se desenvolver até a plena maturidade. Haveria de acontecer o que houve em 1964: os militares não devolveram mais o poder aos civis. Com a significativa diferença de que no novo ‘pronunciamento’ o estabelecimento militar já estava sofisticado e adensado o bastante para pôr em prática um projeto por inteiro: a reforma do país numa moldura autoritária, a mais extrema de toda República.
Os civis, que se sucederam depois de Deodoro, Hermes da Fonseca, dos tenentes, de Góis Monteiro e de Dutra, desta vez iam ser mantidos no cercado. Havia jovens turcos para ocupar todos os postos de mando na estrutura do Estado, treinados para executar os exercícios realizados intensamente nos anos anteriores pela ESG (ou o IPES), com uma única e decisiva falha: sem entender mais profundamente a economia (o que explica o poder plenipotenciário do sagaz e amoral Delfim Neto, ou do déspota esclarecido Reis Veloso, ou do sábio distraído Mário Henrique Simonsen).
Desta vez, seria total o exercício do poder, usado em numerosos casos para usufruto pessoal, mas, em outras numerosas situações, para realizar um projeto: materializar o velho sonho de grandeza do ‘gigante adormecido’. Para despertá-lo e colocá-lo para trabalhar em ordem unida, se necessário, ainda que fosse doloroso, era preciso mandar às favas os escrúpulos de consciência, que Jarbas Passarinho possuía, mas que considerou descartáveis, supérfluos, complicadores na marcha batida na qual os jovens turcos iam colocar a nação. Daí o slogan: ‘Pra frente, Brasil!’
Homem culto para o padrão do homem público brasileiro, certamente Passarinho não teve dúvida ao ler o AI-5: ele era a certidão de nascimento do mais feroz (e, não por acaso, mais longo) período de exceção no Brasil. Ao receber o telegrama da Agência Meridional na redação de A Província do Pará, naquela noite de 13 de dezembro de 1968, também não tive dúvida: aquela luz bruxuleante que brilhara nos céus brasileiros (e nos de vários outros países espalhados pela Terra), graças às tochas dos chienlit ruidosos, se apagara em definitivo. A era da tolerância acabara.
Lembro bem que, encerrada a leitura daquelas quatro laudas, que continham o preâmbulo do ato e seus 12 artigos assombrosos, em estado de choque, peguei um pedaço de bolo do Chico e uma xícara de café, e fiquei a comer com lentidão, talvez, sem perceber na hora, para tentar deglutir melhor aquela coisa monstruosa. O regime da barbárie não tinha tempo para terminar, ao contrário do primeiro dos atos institucionais, que se pré-datara e se imaginara único (tanto que nem número recebeu).
Um instituto milenar de civilização humana, o habeas corpus, foi suspenso para que os presos fossem submetidos a interrogatórios e torturas por pelo menos 10 dias de incomunicabilidade após a prisão (esse ‘cuidado’, o último vestígio de apego à formalidade da norma antes da total bestialização, foi esquecido pela rotina dos desmandos seguintes). Todos estariam sujeitos à visita inesperada do inquisidor, que desencadearia processos tão ou mais irracionais do que aqueles que, meio século antes, Franz Kafka antecipara com sua imaginação sofrida e involuntariamente profética.
Muito o que ler
Foi o momento mais traumático na vida pública da minha geração, com repercussão arrasadora sobre a personalidade de cada um, chaga ainda hoje exposta e a engendrar seqüelas. No dia 1º de janeiro de 1969 eu já estava em São Paulo, onde passaria os anos seguintes mirando o olho do furacão. A história toda se transferiu para São Paulo, mesmo que a capital nacional continuasse a ser Brasília e o Rio de Janeiro tudo fizesse para parecer-se à capital cultural do país. O que havia de bom e de ruim marcou nas ruas da capital paulistana o local para suas justas.
Ali, perdemos a inocência. Como no poema de Bertolt Brecht, a partir daquele momento a ingenuidade seria apenas prova de insensibilidade por parte de quem ainda não sabia das ‘últimas’. Em pouco tempo, havíamos experimentado boa parte das possibilidades ao alcance de um povo. Às vésperas de completar cinco anos de idade, decorei a carta-testamento de Getúlio Vargas, que passou a ser o mote das minhas exibições públicas nas rodas de políticos e amigos em torno do meu pai, em Santarém. Seis anos depois estava nas ruas distribuindo a espada do marechal Lott (eu também, hein?), um prussiano mal-incorporado à nossa bagunça democrática, mas reformista (se o vencedor tivesse sido ele, não seríamos os órfãos de Jânio, conforme Millôr Fernandes nos batizou).
Acompanhei os périplos do meu pai pelo universo do janguismo, mal-impressionado com o jeito bonachão, camarada e inconseqüente do presidente, em quem se podia confiar para tudo que não dissesse respeito aos negócios públicos. Tentei entender o que aconteceu a partir daquela longa noite de 31 de março para o fatídico 1º de abril de 1964, colado ao rádio que chiava, sem qualquer venda ideológica (que não cabia numa cabeça existencialista). Ingressei no jornalismo profissional em maio de 1966, exatamente a meio caminho entre o primeiro golpe, mediado pelos escrúpulos dos udenistas de quepe, e a liberação de Leviatãs e Behemoths, através do código do AI-5.
Depois dos violentos traumas do primeiro ano, sob as ordens dos Torquemadas aboletados nos IPMs, a vida voltou a ser rica e deslumbrante em todo Brasil. Assistimos, fascinados, a espetáculos como Liberdade, Liberdade, Opinião, Os Pequenos Burgueses. Os melhores filmes das nossas vidas, nós os vimos nos redutos dos cineclubes. A ansiedade com a qual esperávamos pelos novos números da Revista Civilização Brasileira ou da Brasiliense, ou pelos novos livros da editora de Ênio Silveira (com sua marca indefectível, dada por Eugênio Hirsch), ou aqueles livros graficamente maravilhosos de obras marxistas (com seu ápice nos três volumes das obras escolhidas de Marx e Engels) produzidos por Mauro Vinhas de Queiroz para a Editorial Vitória, nunca mais se repetiu. E tínhamos jornais como o Pif-Paf, efêmera obra-solo de Millôr, ou o mais meteórico Reunião, ou a revista Diner´s, reedição de Senhor em papel couchê por Paulo Francis, ou os cadernos especiais de jornais como O Estado de S.Paulo, Correio da Manhã e Jornal do Brasil. Um mero índice analítico de tudo que se fazia ocuparia uma edição inteira deste jornal.
Geração sobrevivente
Foi um dos momentos mais fecundos da cultura brasileira. Talvez por haver um inimigo explícito em campo e um risco evidente de enfrentá-lo, aprimorava-se o valor do criador, que sentia o efeito de sua obra desafiadora (às vezes de forma contundente no cocoruto, alcançado pelos cassetetes da lei). Lembro a tensão na qual assistimos ao espetáculo de cantoria e ação no teatrinho da UAP, pelos artistas locais, depois que o espetáculo não pôde ser apresentado no Teatro São Cristóvão, da União dos Chaufferes do Pará, porque a polícia, mesmo não convidada, chegou antes e impediu a sessão. Todos foram para a já muito visada sede da União Acadêmica Paraense, na então São Jerônimo (atual governador José Malcher), avenida paralela, a alguns quarteirões de distância, em cortejo cívico.
Um olho estava no palco, outro olho na entrada do prédio – e o coração pulsava a mil. Quando houve um estrondo só me dei conta de onde estava, do outro lado do quintal, quando começou a risada: uma inocente cadeira é que caíra, seu som amplificado pelo nosso medo. Tão grande que pulei, não sei como, por sobre a estaca de madeira que demarcava os fundos de terrenos naquela época. Passado o susto, encerrada a apresentação, fomos para o bar do Parque. Estávamos incólumes e muito vivos. Comemoramos até o amanhecer, como se tivéssemos saído da batalha das Termópilas. Felicidade é uma palavra que pode ter a ilusão como sinônima. Mas viveríamos nossos sonhos sem uma boa dose de ilusão?
Não viveríamos. Foi assim que enfileiramos as noites insones na ocupação das faculdades, culminando com a elaboração de uma proposta alternativa ao rejeitado acordo MEC-Usaid, que pôs fim aos ensaios de humanismo nas universidades brasileiras. Datilografei muitas folhas de papel durante dois dias e duas noites para que nosso documento fosse entregue ao general-presidente, que o repassou a um assessor, que entregou a outro, que atirou aquela inutilidade no lixo do banheiro do aeroporto de Val-de-Cans quando sua excelência embarcou de novo.
O AI-5 acabou com todas as nossas ilusões quanto à sobrevivência daquele sol de inteligência que continuara a brilhar sobre o céu azul do Brasil, mesmo depois do golpe de 1964. Leviatãs e Behemoths foram liberados das teias dos escrúpulos, a pretexto de dar a devida resposta dos donos do poder à Câmara Federal, que absolvera o deputado Márcio Moreira Alves, por não poder puni-lo pelo que havia dito de supostamente ofensivo às Forças Armadas em um discurso pronunciado da tribuna da casa, sob a sagrada salvaguarda da imunidade parlamentar.
O que se seguiu foi o primado da força, em um e no outro sentido, na manutenção do projeto iniciado de reforma compulsória, com mão-de-ferro, e na tentativa de interrompê-la pelos que, na oposição, finalmente conseguiam uma teoria oportuna para a luta armada, até então preconizada e praticada no deserto da aceitação, com as armas da fantasia onerosa.
Desde então, a geração que sobreviveu a esse inverno da razão espera que nunca mais o Brasil precise fazer qualquer coisa à custa dos escrúpulos de sua consciência. Se colocarem essa frase na nossa tumba, morreremos satisfeitos.
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Jornalistas, o alvo
Os ares nunca foram muito bons para jornalistas críticos (ou independentes) no Pará, antes, agora e – ao que parece – sempre. Em 1928, duas charges da grande imprensa do Rio de Janeiro (então a capital federal) apregoavam essa má fama. Numa delas, do Jornal do Brasil, um cidadão elegante pergunta a outro, alquebrado, se ele foi ‘vítima de uma trombada de auto’. Resposta do acidentado: ‘Não, senhor, sou jornalista no Pará’. Na outra charge, publicada em O Globo, outro cidadão aprecia o muque de um musculoso personagem, mas logo observa que, se fosse jornalista no Pará, o ‘Bentescovavam’. O neologismo era referência explícita: ao então governador Dionísio Bentes de Carvalho.
Depredação de instalações físicas e agressão aos integrantes das redações sempre acompanharam a trajetória da imprensa paraense, quando ela divergiu do poder estabelecido. Ele se tornava ainda mais violento quando combinava o domínio político com o econômico. Os registros a esse respeito são numerosos, mas em 1950 eles atingiram o paroxismo por conta de uma das mais violentas eleições já disputadas no Estado. O poder estabelecido em torno de Magalhães Barata pretendia se manter de qualquer maneira e a oposição queria se ver livre de um domínio hegemônico iniciado em 1930, que até então resistira aos golpes eventuais dos adversários – e dos correligionários que mudavam de lugar, conforme a regra da traição de oportunidade.
A perseguição aos jornalistas começou em 11 de abril daquele ano, com o banho de fezes que os ‘baratistas’ deram em Paulo Maranhão, o dono e principal jornalista da Folha do Norte, a mais feroz cidadela ‘antibaratista’. Esse episódio é mais conhecido, já foi relembrado neste jornal algumas vezes e se tornou incontroverso: não há mais dúvida sobre a autoria do vil atentado contra o velho Maranhão, comandado por Armando Corrêa, então secretário-geral do Estado no governo de Moura Carvalho.
Defesa da honra
Já o outro episódio, de 20 de maio, continua polêmico. Humberto Vasconcelos, capitão do Exército, que estava lotado no Departamento Estadual de Segurança Pública, depois de atuar na assessoria do general Zacharias de Assumpção (que venceria a eleição para o governo, derrotando Barata), quando ele era comandante da 8ª Região Militar, matou o jornalista Paulo Eleutério Filho na sede de O Liberal.
Vasconcelos decidiu cobrar satisfações do autor de matéria da edição do dia anterior do jornal, que levantava dúvidas sobre a sua masculinidade. O oficial atribuía a ofensa ao deputado João Camargo, gerente do jornal, que era órgão oficial do PSD, o partido ‘baratista’, com quem conversara na véspera, no plenário da Assembléia Legislativa.
Camargo realmente fizera observações sobre o modo de vestir do militar, que imaginara um relaxado, mas que se parecia a um dândi. Aparentemente, não questionara a virilidade do militar. A insinuação maldosa surgiria no artigo publicado no dia seguinte, sem assinatura, mas de autoria de João Malato, um dos mais agressivos articulistas da imprensa paraense, que era então redator-chefe de O Liberal.
A versão mais corrente, criada pelos ‘baratistas’, era de que o militar invadira a redação do jornal, no início da manhã, depois de passar algum tempo observando o prédio do outro lado, na Central de Polícia (hoje, Seccional do Comércio). Não encontrando Camargo, que saíra um pouco antes, investira sobre Paulo Eleutério, que escrevia um artigo, matando-o, depois de terem trocado tiros. Por trás do ato de defesa da honra, havia uma questão política: usando o pseudônimo de ‘Cabano’, o capitão escrevia artigos duros na Folha do Norte, inclusive contra os ‘baratistas’.
Arma em punho
Carlos Rocque, na biografia que escreveu sobre Magalhães Barata, publicada em dois volumes pela Secretaria de Cultura, reproduziu pelo menos três versões para o fato. A de João Camargo reconhece que Vasconcelos matou em legítima defesa, reagindo ao ataque de Eleutério, que acumulava o trabalho no jornal com a chefia do gabinete do governador. Foi por assim entender que o Tribunal de Justiça do Estado o absolveu por unanimidade, anos depois, quando ele já era major e exercia o primeiro e único mandato de deputado estadual.
Já Laércio Barbalho, pai do deputado federal Jader Barbalho, diz que Eleutério reagiu às palavras ásperas que ouviu do militar puxando seu revólver (era comum as pessoas andarem armadas nessa época) e trocando tiros com ele na redação. Ao ficar sem balas, o jornalista tentou fugir, mas foi surpreendido pelo capitão e morto. Rocque também reproduz, na íntegra, carta do professor Paulo Eleutério Sênior, que ataca ferozmente o militar (aproveitando-se até da mutilação que sofreu, com a perda de um dos braços, durante uma aula de instrução que dava sobre o uso de granada) e o acusa de ter assassinado covardemente seu filho, versão endossada na manifestação oficial do PSD e a mais difundida desde então.
Mas nem Rocque nem outros historiadores deram atenção ao depoimento que, quatro anos depois do crime, foi prestado pelo acadêmico de direito Francisco Nunes Salgado e reproduzido pela Folha do Norte. Salgado, então com 24 anos na época do crime, era um dos dois repórteres que estavam na redação, localizada no segundo andar do prédio, quando o capitão chegou, procurando por João Camargo. Ao saber que o gerente trabalhava no andar térreo, o militar ‘voltou incontinenti pelo mesmo caminho, e ao passar pelo gabinete do dr. Paulo Eleutério Filho, que então estava em sua banca de trabalho, dirigiu-lhe as seguintes palavras: `Estás armado´’.
Salgado nada mais ouviu porque Eleutério ‘imediatamente alvejou o militar com diversos tiros de um revólver que tinha à cintura’. Humberto Vasconcelos ‘procurava defender-se das balas’, mostrando-se ‘bastante calmo’. Desfez-se das luvas e do quepe que usava, mas não chegou a empunhar a arma que tinha (o futuro advogado não soube precisar se era revólver ou pistola). Foi ‘atingido duas vezes, uma do lado direito e outra do lado esquerdo, na altura da clavícula’. Para escapar dos tiros, Humberto Vasconcelos ‘recuava em direção a uma cabine de rádio, localizada na redação do jornal, do lado oposto ao dos gabinetes dos redatores do jornal’, onde se escondeu, enquanto Eleutério descia as escadas na direção da gerência.
O capitão o seguiu já de revólver em punho. Salgado diz que ‘ouviu muitos tiros de revólver, ou armas de fogo, tanto no pavimento térreo do jornal como para os lados das ruas Santo Antônio e D. Macedo Costa’.
Personagens incômodos
Salgado só pôde prestar seu depoimento quatro anos depois. Disse não entender porque não foi ouvido no inquérito instaurado no quartel-general da 8ª Região Militar, embora fosse testemunha do acontecimento. Já no processo judicial ele depôs como testemunha referida ‘debaixo da impressão causada pelas ameaças de morte de dois capangas policiais, que exerciam pressão’ sobre ele para ‘adulterar os fatos, daí a razão de não ter feito declarações reais de acordo com o que teve a oportunidade de observar’.
Tinha 28 anos quando finalmente depôs. Era então secretário-geral da Associação Comercial do Pará, inspetor federal concursado do ensino comercial e trabalhava na redação de A Província do Pará. Estava no 4º ano do curso de direito. Seu testemunho deve ter contribuído para a absolvição do militar, que depois sairia de Belém para nunca mais voltar, morrendo em Vitória, no Espírito Santo, onde passou a residir desde então, numa espécie de auto-exílio. A violência tem sido uma forma de expulsar personagens incômodos aos poderosos no Pará. Poucos resistem.
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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)