Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

1º de abril, dia da mentira na hora da verdade

Dia dos Tolos, da Troça, do Trote, o 1º de abril é a mais antiga gozação de que se tem notícia (teria começado em fins do século 16, com o rei Carlos 9, da França). A humanidade, geralmente sisuda, permite-se uma vez ao ano não se levar a sério.


A tradição galhofeira mundial levou os militares brasileiros a antecipar a data em que se comemora o golpe que derrubou o presidente João Goulart para 31 de março (de 1964). Quarenta e cinco anos depois convém corrigir a mutreta histórica: a movimentação das unidades do Exército estacionadas em Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro começou efetivamente no último dia de março, mas a adesão das demais unidades completou-se no dia seguinte, quando Jango deixou o país e o cargo de presidente da República foi considerado vago.


Na Espanha, o generalíssimo Francisco Franco não teve nenhum problema em declarar o dia 1º de abril de 1939 como o dia da vitória sobre as forças legalistas, republicanas. Terminava o mais sangrento episódio da história espanhola com dramáticas conseqüências no panorama internacional.


Deboches à parte, é preciso encarar a verdade: a guerra civil espanhola, iniciada em 17 de julho de 1936, foi o primeiro round, o trailer, da 2ª Guerra Mundial, por sua vez a maior catástrofe global dos últimos 500 anos. Os nacionalistas espanhóis foram ajudados pelos monarquistas, clericais, conservadores, pela Alemanha nazista e pela Itália fascista.


Anos de exceção


Franco e seus generais imaginavam um movimento rápido, cirúrgico. Não contavam com a capacidade de mobilização dos anarquistas, nem com o empenho das Brigadas Internacionais que reuniram os libertários do mundo inteiro para defender os conceitos de República, democracia e solidariedade.


Terminado o banho de sangue de três anos, a ditadura franquista se estendeu por mais 36, até a morte do caudilho (1975). A Espanha jamais esqueceu, minimizou ou disfarçou a sua tragédia e em diversas ocasiões mostrou que não estava interessada em cicatrizar as feridas a qualquer preço. As violências contra sacerdotes e freiras nunca foram escondidas, nem a participação do clero na repressão fascista. A mão pesada dos stalinistas contra anarquistas e trotskistas nunca foi ignorada, estes traumas e rancores só foram superados quando todos os que defendiam a República juntaram-se para lutar contra Hitler e Mussolini.


No El País de domingo (29/3, pág. 8) falou-se na dificuldade em encontrar sobreviventes e testemunhas de uma guerra que começou há 73 anos e acabou há 70. A história oral espanhola tem os seus dias contados. Breve, apenas os documentos falarão.


Em 1964, os militares brasileiros também imaginaram uma intervenção fulminante, incisiva. Não pretendiam uma ditadura prolongada, assumiram o pretexto do contragolpe (como já acontecera em 1937 e 1955): enquadrar os ‘subversivos’, arrumar a casa, fazer reformas e regressar à democracia: ficaram no poder por 21 anos, o mais longo penoso período de exceção desde a promulgação da Constituição de 1824.


Polêmica quente


Ao contrário da disposição espanhola de discutir o passado sem constrangimentos, preconceitos e pudores, a ditadura brasileira bem como seus antecedentes permanecem praticamente intocados, imunes a questionamentos.


Ninguém quis acreditar quando o ex-deputado comunista Marco Antonio Tavares Coelho descreveu em livro a reação do chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro, naquele 31 de março de 1964, mandando distribuir metralhadoras às lideranças sindicais para liquidar os líderes civis do golpe (Herança de um sonho, as memórias de um comunista, Record, 2000, pp. 268-269).


Marco Antonio Coelho foi barbaramente torturado pelo regime militar e só não morreu porque a imprensa, mesmo censurada, conseguiu contar o que se passava com ele.


[Nas suas memórias, Darcy Ribeiro descreve aqueles momentos finais do governo Jango: ‘Fiquei no meu posto, passando pitos e dando ordens incumpríveis’. Não explicou o teor destas ordens. (Confissões, Companhia das Letras, 1977, pág. 355)]


Não apenas certas passagens, também o clima da ditadura ainda não acabou, impregnado em instituições e comportamentos. Alguns dos atores do seu elenco civil continuam em cartaz (Delfim Netto e José Sarney). O vale tudo que produziu os ‘anos de chumbo’ não foi banido, está sendo atualizado continuamente. Convivemos com ele despreocupados porque a catarse não se consumou plenamente.


A polêmica mais quente, capaz de estimular revisões, aconteceu recentemente, por casualidade, alavancada por uma gafe jornalística, continuada através de impropérios dos envolvidos e encerrada numa manifestação de rua que desaguou nas esquinas das vizinhanças. Já está arquivada, apenas os leitores da Folha de S.Paulo dela tomaram conhecimento.


Inalienável e inesquecível


Discutir se o regime militar foi uma ditadura ou uma ‘ditabranda’ é infantilismo político. Tragédias e tragédias políticas não podem ser medidas, comparadas. Não existem equipamentos para quantificar a dor, a mágoa, a revolta, a vergonha e a humilhação provocada por um golpe de Estado.


Todos os golpes se parecem é o título de um dos volumes da série de estudos do historiador Hélio Silva (sobre o golpe de 1937). O ‘Estado Novo’ de Getúlio Vargas (copiado do modelo salazarista de mesmo nome) foi instalado em 11 de novembro de 1937 sem um tiro. Com notas oficiais e pronunciamentos. Ninguém foi torturado, os que poderiam oferecer resistência estavam foragidos, exilados, encarcerados, doidos ou definhavam nos campos de concentração nazista desde 1935. Seus efeitos foram catastróficos: acostumou o Brasil às ‘ditabrandas’, violências sem violência, incruentas, catastróficas.


O deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP) deu um tremendo susto nos leitores do Estado de S. Paulo com a advertência sobre os perigos contidos na decisão do STF sobre a continuidade da reserva indígena Raposa/Serra do Sol (29/3, pág. 3). Ninguém percebeu o potencial fratricida de uma opção ‘progressista’, politicamente correta, adotada pelo coletivo da suprema corte. Simplesmente porque não estamos atentos às guerras civis. Fingimos que nunca as tivemos. Na Espanha, guerra civil é algo concreto, inalienável e inesquecível. Por isto o país respeita as autonomias regionais e o multiculturalismo (violentamente reprimidos durante o franquismo).


Desconforto evidente


Tarefa urgente: substituir o 31 de março pelo 1º de abril e acabar com as fantasias. Indispensável encarar a galhofa e o nosso passado manchado de sangue. Para evitar repetições.


As fontes da nossa história oral não estão em vias de extinção (ao contrário da Espanha), só se passaram 45 anos desde o início da ‘Redentora’, há uma legião de sobreviventes e testemunhas prontas a oferecer contribuições. A liberação dos documentos confidenciais (como aconteceu há pouco com as atas do Conselho de Segurança Nacional) poderá iluminar passagens imprecisas, situações ignoradas.


Documentos isolados não falam, precisam ser costurados, encadernados, contextualizados. Quem o fará?


É notório o desconforto da nossa imprensa com a história (basta lembrar o esforço de supressão dos festejos do seu bicentenário). Porém é um consolo saber que tabus não são eternos.