Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

90 anos em 9 atos

Houve um tempo em que os leitores se referiam à Folha no plural. Afinal, até os anos 50 havia três Folhas: a da Manhã, a da Tarde (depois relançada) e a da Noite. Em 1960, a Folha de S.Paulo reuniu os títulos, e hoje se diz Folha, no singular.

O plural, no entanto, aplica-se bem à história do jornal. Em 90 anos, houve várias Folhas: a dos anos 20, vespertina e coloquial; a dos anos 50, que vivenciou um processo de modernização; a dos anos 60, que se tornou a ponta de lança de um conglomerado; a dos anos 70, que ganhou credibilidade com a abertura política; a dos 80, que mudou o jornalismo brasileiro com o Projeto Folha; e a atual, que foi pioneira na integração das plataformas impressa e on-line.

Os nove momentos abordados neste texto mostram como a Folha é plural – e singular.

1. O nascimento de uma Folha

Se houvesse uma bíblia do jornalismo brasileiro, lá estaria escrito que a Folha nasceu de uma costela do jornal O Estado de S. Paulo. Com o título de Folha da Noite, a publicação que daria origem à Folha de S.Paulo nasceu em 19 de fevereiro de 1921 por obra de um grupo de profissionais egressos do jornal da família Mesquita, em cujas oficinas começou a ser impressa.

Os jornalistas, entre eles Júlio de Mesquita Filho, que escreveu o ‘programa’ do jornal publicado na primeira edição, haviam ficado órfãos da edição vespertina do Estado, informalmente chamada de Estadinho, que fizera sucesso durante a Primeira Guerra Mundial (1914-18).

Ao contrário do matutino, mais sisudo, o Estadinho se permitia um coloquialismo que era do agrado dos jovens jornalistas. Depois de seis anos de vida, o vespertino foi fechado. ‘Não nos conformávamos com o seu desaparecimento. Daí a ideia de Folha da Noite‘, escreveu Paulo Duarte, um dos integrantes do grupo.

Duarte e Mesquita logo voltaram ao Estado, e a Folha da Noite ficou sob a responsabilidade de outros dois fundadores, Pedro Cunha e, sobretudo, Olívio Olavo de Olival Costa, responsável pela política editorial. Não à toa o jornal era chamado de a ‘Folha do Olival’.

Mas bem que poderia ter sido também a ‘Folha do Belmonte’, o caricaturista Benedito Bastos Barreto, que, com seu personagem Juca Pato, deu identidade à Folha da Noite.

2. A modernização de Nabantino

A Folha moderna começou a nascer com José Nabantino Ramos, que em março de 1945 assumiu o controle da Folha da Noite e da Folha da Manhã, esta criada em 1925. Seu primeiro movimento foi afastar o conde Francisco Matarazzo Júnior, que havia adquirido o jornal para usá-lo como tribuna contra Assis Chateaubriand, que o atacava pelas páginas das publicações dos Diários Associados.

Uma vez no comando, Nabantino tratou de imprimir às Folhas uma política editorial pautada pela imparcialidade. Se nem sempre teve êxito, diferenciou os jornais da concorrência, toda ela alinhada ao conservadorismo da UDN (União Democrática Nacional).

Em 1948, publicou o Programa de Ação para as Folhas, tentativa pioneira de conceituar a atividade em termos editoriais e empresariais, o que foi consolidado em 1959 num documento de 275 páginas.

Seu legado foi um jornal de porte médio, a Folha de S.Paulo, fusão das Folhas da Manhã, da Tarde e da Noite concretizada em 1º de janeiro de 1960.

3. A formação do conglomerado

O primeiro passo em direção ao conglomerado jornalístico foi dado em 13 de agosto de 1962, quando Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho compraram a Folha. Assim que saldaram as dívidas contraídas para pagar o negócio, os sócios começaram a ampliar o grupo.

Em 1965, entraram no ramo do jornalismo popular com a aquisição da Última Hora e do Notícias Populares. No mesmo ano, compraram um terço da TV Excelsior, então líder de audiência. Dois anos depois, foi relançada a Folha da Tarde. E surgiu o Cidade de Santos, enquanto os dois sócios assumiam o controle administrativo da Fundação Cásper Líbero.

Com tamanho apetite para incorporações, a concorrência desconfiou da origem dos recursos, que na realidade eram prosaicas operações bancárias.

4. O papel na ditadura

A Folha apoiou o golpe militar de 1964, como praticamente toda a grande imprensa brasileira. Não participou da conspiração contra o presidente João Goulart, como fez o Estado, mas apoiou editorialmente a ditadura, limitando-se a veicular críticas raras e pontuais.

Confrontado por manifestações de rua e pela deflagração de guerrilhas urbanas, o regime endureceu ainda mais em dezembro de 1968, com a decretação do AI-5. O jornal submeteu-se à censura, acatando as proibições, ao contrário do que fizeram o Estado, a revista Veja e o carioca Jornal do Brasil, que não aceitaram a imposição e enfrentaram a censura prévia, denunciando com artifícios editoriais a ação dos censores.

As tensões características dos chamados ‘anos de chumbo’ marcaram esta fase do Grupo Folha. A partir de 1969, a Folha da Tarde alinhou-se ao esquema de repressão à luta armada, publicando manchetes que exaltavam as operações militares.

A entrega da Redação da Folha da Tarde a jornalistas entusiasmados com a linha dura militar (vários deles eram policiais) foi uma reação da empresa à atuação clandestina, na Redação, de militantes da ALN (Ação Libertadora Nacional), de Carlos Marighella, um dos ‘terroristas’ mais procurados do país, morto em São Paulo no final de 1969.

Em 1971, a ALN incendiou três veículos do jornal e ameaçou assassinar seus proprietários. Os atentados seriam uma reação ao apoio da Folha da Tarde à repressão contra a luta armada.

Segundo relato depois divulgado por militantes presos na época, caminhonetes de entrega do jornal teriam sido usados por agentes da repressão, para acompanhar sob disfarce a movimentação de guerrilheiros. A direção da Folha sempre negou ter conhecimento do uso de seus carros para tais fins.

5. Surfando a onda da abertura

No início de 1974, Octavio Frias de Oliveira, publisher da Folha, foi procurado por Golbery do Couto e Silva, futuro chefe da Casa Civil do governo de Ernesto Geisel, prestes a tomar posse.

Os dois militares seriam os principais artífices do projeto de distensão e abertura política, e Golbery encontrou-se com donos de jornais para expor o plano. Sabendo que enfrentaria a resistência da linha dura, queria a imprensa como aliada natural.

No caso da Folha, Golbery deixou claro que ao futuro governo não interessava ter um único jornal forte em São Paulo. A conversa coincidiu com discussões internas na empresa, com vistas a aproximar a Folha da sociedade civil. A empresa tinha saldado as dívidas iniciais e se expandido. O passo seguinte seria transformar o matutino num jornal influente.

Em meados de 1974, uma reunião em Nova York entre Frias, Cláudio Abramo e Otavio Frias Filho foi decisiva para a definição da nova estratégia. Sob a inspiração de Frias pai, uma ampla reforma editorial foi concebida e executada nos anos seguintes por Abramo, que trabalhava na Folha desde 1965. As páginas 2 e 3 se tornaram espaços de opinião crítica. Passaram a fazer parte da equipe editorial colunistas renomados, como Paulo Francis e, mais tarde, Janio de Freitas.

A trajetória teve um desvio em 1977, quando, por pressão da linha dura do governo, Abramo foi afastado de seu cargo. O revés, no entanto, seria passageiro. Boris Casoy, que o substituiu, manteve a orientação e garantiu que o jornal tivesse um espaço relevante no processo de redemocratização.

6. O jornal das Diretas

Em 1983, o Brasil estava num limbo político: tinha-se como certo que o ciclo militar se aproximava do fim, mas a eleição para presidente ainda era indireta. Foi nesse contexto que, timidamente, surgiu o movimento das Diretas-Já.

A Folha foi o jornal que mais se associou às Diretas. Seu engajamento é anterior ao das principais lideranças de oposição que, em fins de 1983, ainda não formavam uma frente compacta, deixando prevalecer os interesses partidários. Nessa altura, quando o movimento mal conseguia encher uma praça, o jornal criticou o sectarismo dos políticos e o silêncio da imprensa.

Os jornais só passaram a dar importância às Diretas-Já a partir de 25 de janeiro de 1984, quando o aniversário da cidade se transformou no primeiro dos muitos megacomícios que seriam realizados nos três meses seguintes.

Quando praticamente toda a imprensa cobria o movimento, o diferencial da Folha foi o tom de campanha. Jornalistas da sede em São Paulo viajavam para todas as capitais e grandes cidades onde eventos eram realizados. Os textos, com frequência ufanistas, procuravam inflamar os ânimos, de modo a arrastar mais pessoas para as ruas. No auge do movimento, a Folha passou a ser chamada até nos palanques de ‘o jornal das Diretas’.

Com a autoridade moral conquistada durante a campanha, o jornal também criticou desvios de lideranças políticas, ao identificar manobras por baixo do pano com vistas a garantir a eleição indireta de um civil de oposição.

Quando as Diretas foram derrotadas no Congresso, em 25 de abril, a Folha foi o jornal que captou com mais intensidade a decepção popular. ‘A NAÇÃO FRUSTRADA!’ foi a manchete do dia seguinte, ao lado de um editorial que chamava os parlamentares responsáveis pelo resultado de ‘fiapos de homens públicos’ e ‘fósseis da ditadura’.

Apesar da derrota, o movimento pavimentou o caminho para a eleição indireta do oposicionista Tancredo Neves. Quanto à Folha, saiu da campanha com capital editorial suficiente para se tornar um dos jornais mais influentes do país.

7. Projeto Folha

As Diretas-Já representaram o apogeu e o fim de um consenso suprapartidário das oposições. Sem mais uma causa em comum a defender, cada partido tratou de traçar sua própria estratégia. Com o término do bipartidarismo, PMDB, PT, PDT, PTB e outras siglas surgidas entre fins dos anos 70 e início dos anos 80 passaram a buscar cada qual o seu espaço.

Respondendo a essa fragmentação, a direção do jornal elegeu o pluralismo e o apartidarismo (predicados valorizados em outros momentos da história do veículo) como os principais pilares do Projeto Folha.

O projeto começou, na prática, um mês depois da votação das Diretas-Já, quando Otavio Frias Filho assumiu a Direção de Redação. Três meses depois entrava em vigor o Manual Geral da Redação, consolidando as linhas centrais do projeto. Do ponto de vista formal, tentava-se estabelecer um padrão que eliminasse os excessos de opinião e impressionismo característicos da cobertura das Diretas.

A redação foi informatizada em 1983-84. Surgiram programas de treinamento, bolsas para jornalistas atuarem no exterior, avaliação interna das equipes e uma mensuração sistemática dos erros cometidos pelo jornal, assim como a seção ‘Erramos’ e o cargo de ombudsman, jornalista contratado para criticar o próprio periódico num boletim interno diário e numa coluna semanal. Criado nessa fase, o instituto Datafolha, além de pesquisas eleitorais, passou a fazer levantamentos periódicos do perfil do leitor do jornal.

Implantado com rigor, o Manual da Redação enfrentou a resistência de parte dos jornalistas, sobretudo de alguns dos mais experientes repórteres, que se sentiam tolhidos por regras draconianas que, em versões posteriores, foram abrandadas e substituídas pelo exercício do bom-senso.

Superadas as dificuldades internas, o Projeto Folha teria ainda que passar pelo crivo da sociedade civil com a qual o jornal se identificava desde meados dos anos 70. Já na eleição indireta de 1985, a Folha tratou igualmente os dois candidatos, Tancredo e Paulo Maluf, este em aliança com a desgastada base governista dos militares. A cobertura, criticada pela opinião majoritária do chamado campo progressista, mostrou como não é simples a prática do apartidarismo.

8. O confronto com Collor

Quando Fernando Collor assumiu a Presidência da República, em 15 de março de 1990, suas relações com a Folha já eram conflituosas. O jornal fizera uma série de reportagens que manchavam sua reputação de ‘caçador de marajás’, construída com a ajuda da mídia. Também o comparou, em artigos de Clóvis Rossi, a Jânio Quadros; ele seria mais um salvador da pátria, um produto do marketing político.

A posição da Folha contrastava com a da grande imprensa, que, seduzida por seu discurso liberal, endossou a candidatura de um político até então pouco conhecido que chegou à disputa presidencial a bordo de um partido nanico.

A Folha também elogiou sua defesa da modernização do capitalismo brasileiro, tema do discurso de posse. Ainda assim, na semana seguinte, a Polícia Federal invadiu a sede do jornal, acusado de desrespeitar o tabelamento de preços – na realidade, uma tentativa de intimidação. Seis meses mais tarde, o presidente processou quatro jornalistas da Folha, inclusive Otavio Frias Filho, tentando caracterizar como calúnia um conjunto de reportagens e notas contidas numa seção de bastidores da economia. Em janeiro de 1992, os jornalistas foram absolvidos.

Nessa altura, já estava em marcha o Collorgate. Em 30 de junho, em editorial de primeira página, a Folha pediu a renúncia do presidente. Três meses depois, em 29 de setembro, Collor foi afastado pela Câmara, com a abertura do processo de impeachment.

9. A integração impresso-on-line

Desde meados dos anos 1980, a Folha tem feito reformas gráficas a cada 5 ou 6 anos. A mais recente ocorreu em maio do ano passado, com ampliação do tamanho das letras impressas e uso mais generoso de imagens. Também no ano passado, em abril, a Folha se tornou um dos primeiros jornais do país a promoverem a fusão entre as equipes voltadas ao jornal impresso e à versão online, que passou a se chamar Folha.com.

O objetivo de unir sob o mesmo comando editorial as duas plataformas noticiosas é ampliar as possibilidades de acesso do leitor a informações.

Ao preservar a identidade de cada meio, a integração permite que o leitor escolha entre o papel e a tela, de acordo com sua conveniência.

A sintonia entre os dois meios mostra que, ao contrário do que ocorre com alguma frequência no universo da internet, a agilidade do noticiário on-line não é incompatível com a preservação dos padrões de qualidade editorial, típica do veículo impresso.

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Jornalista, autor de A Aventura do Dinheiro e A História do Brasil no Século 20, entre outros