O Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, o mais influente jornal brasileiro durante a maior parte do tempo em que circulou (de 1901 a 1974), ainda está à espera de quem lhe reconstitua a rica e tumultuosa história. Não é por falta de tentativa: é por pobreza dos trabalhos que se inspiraram no matutino carioca.
Seu ex-gerente financeiro por curto período, José Luiz Milhazes, deu um dos mais esclarecedores depoimentos sobre o período chave da crise final do jornal, entre 1968 e 1969. A matéria, em três páginas da edição 372 do Jornal da ABI (que se tornou fonte preciosa de informação sobre a imprensa brasileira desde que Maurício Azevedo assumiu a direção da Associação Brasileira de Imprensa). O testemunho de Mihazes não é profundo nem amplo, mas confirma uma interpretação heterodoxa sobre o desaparecimento do jornal.
Todos louvam o heroísmo, a coragem e a dignidade de Niomar Moniz Sodré Bitencourt, como a maior heroína da imprensa nacional. Todas essas qualidades são incontestáveis e não são fáceis de imitar. Mas lhe faltou uma, que seria fatal: o discernimento. Ela se deixou empolgar pela companhia e as palavras de alguns dos jornalistas que estavam ao seu lado naqueles momentos críticos. Eles queriam que o Correio se tornasse um baluarte da resistência à ditadura, na crença daqueles idos de 1968 de que o regime militar, de apenas quatro anos (duraria 19), seria derrubado pelas passeatas de estudantes, intelectuais e artistas, como se estivéssemos na França de De Gaulle e Cohn-Bendit. A visão triunfalista se esboroou. Os tanques passaram por cima da resistência e aprofundaram a tirania.
Uma visão mais madura e sensata, mesmo sem desviar o jornal da resistência ao arbítrio e à violência estatal, que tanto o elevou, evitaria iniciativas editoriais que se assumiam como provocativas. Niomar foi aconselhada por diferentes tipos de amigos e conselheiros, que gravitavam desde muito tempo em torno da mística do Correio, a refrear o entusiasmo combativo dos que se postavam na redação do jornal como num front de guerra. Heróico, sim, mas inútil.
Versão consagrada
É preciso não esquecer que Niomar assumiu de fato a direção do Correio em dezembro de 1963, quatro meses depois da morte do seu marido, Paulo Bittencourt, filho do fundador do jornal, Edmundo Bittencourt. Foi Paulo quem esteve à frente do jornal na sua fase mais gloriosa (de 1929 a 1963) e quem lhe deu o perfil de um órgão de imprensa conservador, elitista, mas defensor das liberdades, da democracia e de independência em relação ao governo.
Sua viúva se portou com rara dignidade diante da perseguição que os chefes militares lhe moveram. Uma vez constatado que as alternativas do jornal estavam desaparecendo, ela aceitou entregar o Correio aos donos da Cia. Metropolitana de Construção, Maurício Nunes de Alencar (irmão do futuro senador e duas vezes governador do Rio, Marcelo Alencar) e Frederico Gomes da Silva.
A intenção dos dois era colocar o jornal a serviço da candidatura à presidência da república do ministro-coronel Mário Andreazza, o querido dos empreiteiros. Quando a candidatura fez água, a dupla se desinteressou pelo jornal: não cumpriu o contrato e asfixiou a publicação até a morte indigna. Niomar ainda teve a oportunidade de repassar o Correio a um grupo empresarial do meio, mas tentou equivocadamente reavivar um cadáver.
Milhazes é incisivo, na entrevista ao Jornal da ABI: tinha certeza de que os empreiteiros usariam o jornal para um objetivo imediato, não para recuperá-lo: “O que eu acho é que naquele momento, para poder resolver o seu drama pessoal, ela entregou as nossas cabeças. E de todos os que até aquele momento estiveram junto dela”.
As declarações do ex-gerente corrigem o rumo da interpretação da crise e da morte do Correio da Manhã. A versão consagrada pela esquerda pode ser útil à causa da democracia, mas não é verdadeira. E se não é a expressão dos fatos, não pode servir à história real e concreta, a única que pode ser lição para a humanidade na busca por um destino melhor.
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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista e editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]