Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Dilemas da imprensa regional

Quem conheceu o jornal Gazeta do Povo, do Paraná, 30 anos atrás, surpreende-se hoje com sua quase inacreditável melhora editorial. Este que é o jornal de maior circulação do Paraná transformou-se num dos jornais regionais mais bem produzidos do país. Houve, no período, uma mudança importante na gestão do jornal: falecido em 2009, Francisco da Cunha Pereira, que comandou a redação com “punho de ferro” durante muitos anos, entregou o comando da empresa aos filhos ainda em vida.

Os filhos têm méritos, souberam como manter a vitalidade econômica da Gazeta e, lentamente, imprimiram grande qualidade ao diário. Quem está de fora, entretanto, acredita que nada de relevante teria acontecido ao jornal não fosse o que é chamado no Paraná de “efeito Requião”. O hoje senador Roberto Requião (PMDB) governou o Paraná por um total de 12 anos em três mandatos. Atribui-se a ele, muita coisa ruim: o aumento vertiginoso da violência na Grande Curitiba, o atraso do PIB estadual, desmandos na área portuária etc. Um mérito ao menos ele teve (digamos que seja realmente um mérito): ao cortar brutalmente as verbas que sempre alimentaram as mídias do Paraná, algo que se registrou com mais dureza a contar do início de seu terceiro mandato (2007), Requião permitiu que surgisse um ciclo de arejamento e independência em toda a mídia paranaense. E a Gazeta do Povo foi o que mais soube aproveitar, em favor de seus leitores, as condições da nova fase.

É confortável viver das verbas oficiais

Não se pode contar a história do desempenho e da evolução da mídia regional brasileira sem passar pelo Paraná, onde, nos últimos 40 anos, os governos, inclusive aqueles da época do regime militar, foram extremamente generosos na disponibilização de verbas para a mídia em troca de um absoluto atrelamento editorial. Jornais, emissoras de rádio e de televisão eram como se fossem cúmplices do governo, em praticamente todos os seus erros e acertos. Recortes da publicação de releases (e os governos do Paraná sempre foram pródigos na produção de releases) serviam depois como comprovantes das generosas verbas oficiais, distribuídas indiscriminadamente e sem nenhum critério técnico.

Talvez, contraditoriamente, para o próprio bem do país, os Requiões da vida sejam aves raras, de modo que a dependência – e o atrelamento – da mídia regional aos interesses de governos estaduais e municipais é ainda muito forte em praticamente todos os quadrantes do Brasil. E é isto o que, afinal, tem feito a grande diferença. Por toda a parte, são raros os prefeitos e governadores que sabem trabalhar com uma imprensa regional independente. Não é apenas no plano nacional que a imprensa tem sido constantemente acusada de atrapalhar legisladores e governantes. O problema talvez não surja com maior evidência no plano regional por causa desse amplo e irrestrito atrelamento. Que um pequeno jornal regional ouse desafiar os interesses dos governos locais para ver o que acontece. Estará sob ameaça até de desaparecer do mapa. No plano regional, a pressão é exercida em dose cavalar.

Carlos Castilho, em seu belo artigo neste Observatório da Imprensa (“Quem perde com o desaparecimento dos jornais locais”, edição nº 690), menciona pesquisa da Pew Center, realizada nos Estados Unidos, segundo a qual 72% dos norte-americanos seguem regularmente o noticiário local e 32% admitem que sua vida seria gravemente afetada caso a imprensa local desaparecesse. Seria alvissareiro que a pesquisa, uma vez realizada no Brasil, apresentasse idênticos resultados. Seria possível demonstrar aos donos de jornais regionais que, a exemplo do que hoje acontece com a Gazeta do Povo, é possível crescer e se desenvolver escorados no leitor, deixando de se escorar, unicamente, nos governos. No cenário atual, tal perspectiva deve ser encarada com ceticismo. É muito mais confortável viver exclusivamente das verbas oficiais. O governo banca as operações e tudo aquilo que se arrecada com publicidade é lucro.

Informação de qualidade

Nos últimos anos de vida, a Gazeta Mercantil começou a editar jornais regionais com notícias de economia e negócio. Os jornais regionais da Gazeta, editados nos principais mercados brasileiros, eram encartados no jornal-mãe e distribuídos apenas regionalmente. Quem viveu, como eu, essa experiência pode perceber o quanto a informação regional bate forte nos leitores. Era comum encontrarmos na mesa de executivos e empresários de todo país um exemplar da Gazeta Mercantil separado de seu jornal regional, que aparecia todo recortado e rabiscado, indicando a grande utilidade e o grande interesse pelas informações locais. Não nos esqueçamos, contudo, que a Gazeta não se envolvia em política e nem nas questões urbanas, a não ser que estas tivessem um viés econômico ou de negócio. Era fácil, portanto, trabalhar com independência em economia e negócios.

Na verdade, como diria Millôr Fernandes, jornal é oposição, o resto é armazém de secos e molhados. Trazer de volta o jornal regional à condição de oposição (não cheguemos a tanto, basta pensarmos em independência) traduz-se num dilema e tanto. É interessante pensarmos que a contribuição que os cidadãos, hoje aparelhados com celulares e cameretas, podem oferecer aos jornais regionais é algo que também deve ser relativizado. São contribuições que não conseguirão vencer as amarras do atrelamento. Mais a mais, notícia que é notícia tem de ser captada pelo repórter. E o pressuposto é que o repórter tenha acurada noção de importância e hierarquia da informação. Caímos novamente no investimento e no quanto é cara a informação de qualidade. O nó está aí e precisa ser desatado. Não convém esperar por Roberto Requião.

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[Dirceu Martins Pio é ex-diretor da Agência Estado e da Gazeta Mercantil e atual consultor em comunicação corporativa]