Massoud Hossaini mostra as cicatrizes que o atentado deixou em sua mão esquerda. Ele ainda não recuperou totalmente os movimentos, dobra os dedos com dificuldade. Até hoje se pergunta por que sobreviveu quando 70 pessoas morreram a poucos metros dele. Ferido, clicou com a mão direita a imagem do terror estampado no rosto de uma menina segundos após a explosão durante uma celebração xiita em Cabul, capital afegã; o contraste do sangue no vestido verde, a expressão de choque e desespero em seus olhos, o grito nos lábios, as mãos estendidas para uma pilha de mortos, entre eles sete pessoas da sua família. A fotografia levou o Prêmio Pulitzer, anunciado há uma semana, convertendo Hossaini no primeiro afegão a vencer o mais prestigiado prêmio de jornalismo do mundo.
“Foi o momento mais assustador de minha vida”, disse ao Estado, durante um encontro no Wakhan Café, em Cabul, pouco depois de saber da premiação. O verde intenso do vestido da menina tinha chamado sua atenção minutos antes do atentado, ocorrido em 6 de dezembro no festival da Ashura, quando os xiitas lembram a morte do imã Hussein, neto do profeta Maomé. Ele fotografava o evento para a Agência France Presse (AFP) quando houve a explosão. Hossaini sentiu uma pressão forte no corpo, como um empurrão. Caiu. Ainda sem saber o que havia acontecido, percorreu a cena com os olhos. Em meio à poeira e fumaça, viu a menina do vestido verde. “Numa situação dessas, você se sente vulnerável, incapaz. Então, comecei a clicar. Era a única coisa que podia fazer. A dor, só fui sentir depois. Eu estava em choque”, disse.
Ontem, por telefone, de Amsterdã, onde recebeu outro prêmio pela mesma foto – o World Press –, Massoud disse ao Estado ter ainda um “sentimento misto” sobre a premiação. “Eu estou feliz porque sei que me tornei uma voz para o povo afegão, para os tantos civis que morrem todos os dias no meu país. Sei que minhas imagens puderam mostrar o tamanho do sofrimento e a fragilidade da vida no Afeganistão. Ao mesmo tempo, me deixa triste porque me faz lembrar todo o tempo aquelas cenas.”
O Pulitzer foi o primeiro da AFP
Hossaini não podia parar de chorar. Passou rapidamente no escritório da AFP, transferiu as fotos para o computador e foi para a casa dos pais, queria estar perto da família. A mulher, Farzana, também fotógrafa, não estava em Cabul. Ele nunca mais conseguiu voltar a ver as imagens que clicou naquele dia – exceto a vencedora do Pulitzer, que estampou a capa de jornais do mundo inteiro, como o New York Times e o Washington Post.
Hossaini visita frequentemente a família de Tarana Akbari, de 11 anos, a menina da fotografia. Ela, a mãe e a irmã mais velha estão recuperadas, ele diz, embora ainda tenham pesadelos terríveis. A irmã mais nova, de seis anos, no entanto, corre o risco de perder a perna esquerda. Com a divulgação do Pulitzer, Hossaini espera que uma organização internacional o ajude a levar a família para tratamento médico e psicológico fora do Afeganistão, pois o país ainda não tem bons hospitais e clínicas. Hossaini tem 30 anos e faz parte de uma geração de jornalistas que floresceu com a queda do Taleban. A família migrou para o Irã após seu pai ser preso por fazer oposição ao regime soviético, nos anos 1980.
Em Teerã, longe da subsequente guerra civil e do regime dos radicais, ele pôde estudar, ingressou no movimento reformista iraniano e começou a clicar. Quando o Taleban foi deposto, em 2001, voltou ao Afeganistão para trabalhar para a agência Aina, iniciativa do fotógrafo Reza Deghati, da National Geographic, para ensinar fotografia e vídeo a jovens afegãos. Em 2007, Hossaini foi contratado pela AFP – o Pulitzer foi o primeiro da agência francesa.
Jornalistas são alvo da insurgência
“As novas gerações de afegãos têm muitos talentos. Mas precisamos de um governo forte que nos ajude a exercê-los. Ninguém quer a volta do Taleban. Se o governo e os estrangeiros continuarem dando poder a essa gente, abrindo mão da liberdade, dos direitos que as mulheres conquistaram na última década, da educação, nós perderemos tudo”, diz. Ele espera que as forças estrangeiras lideradas pelos EUA permaneçam no país além de 2014, mas desde que parem de fazer “jogo duplo” na política. “Nos últimos dez anos, os EUA continuaram enviando bilhões ao Paquistão enquanto lutavam contra insurgentes no Afeganistão, mas todos sabem que está por trás da insurgência, do Taleban.”
Ele podia sair do país, conhece os riscos de ficar, mas escolhe corrê-los. “Eu não digo que não tenho medo. Em razão do prêmio, tornei-me conhecido e muitos não estão felizes com isso. Se as tropas estrangeiras deixarem o país e o Taleban voltar hoje, amanhã já não estarei vivo”, diz Hossaini, sem mudar o tom de voz. Os jornalistas que trabalham para a imprensa estrangeira no Afeganistão são um alvo da insurgência. “Mas me recuso a desistir. Quero permanecer no Afeganistão e continuar o meu trabalho.”
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[Adriana Carranca, enviada especial do Estado de S.Paulo a Cabul]