Duas esperanças problemáticas em relação à imprensa brasileira, manifestadas simultaneamente. Uma, de Barack Obama, na Cúpula das Américas, na Colômbia. Mas prefiro começar pela outra, de Suzana Singer, ombudsman da Folha. Depois de referir-se às relações de parte da imprensa com o círculo de Carlinhos Cachoeira, citadas nos vazamentos da Polícia Federal, Suzana Singer conclama: a imprensa “tem o dever de apurar tudo – mas sem se poupar. É hora de dar um exemplo de transparência”.
Por nossa conta, pode-se encontrar na última frase um segundo sentido, que é o da necessidade de uma transparência ainda ausente das normas. Aqui, é claro. O caso remete, porém, a uma face ainda mais crítica do uso da marginalidade para obter informações. A depender das circunstâncias, o contato com a marginalidade pode ser jornalístico e legítimo. Não há como saber se o é na maioria ou na minoria das vezes. Mas sempre deveria estar, e não está, submetido ao cuidado de ponderar sobre a finalidade de quem dá a informação. Na marginalidade, a tendência do propósito é servir à própria marginalidade. E, quando é assim, o jornalista e sua publicação servem também à marginalidade.
Se houver, devem ser poucas as dúvidas sobre a prática mais crítica que é a compra de informações e de documentos, para noticiário denunciante. Esta pode parecer mera transação, mas ainda que o fosse, jornalista não é negociante de notícias e documentos. No mínimo porque tal negócio é uma forma de corrupção. Nos vazamentos da PF não apareceu negócio algum nas conexões de imprensa e Cachoeira. Mas também não há motivo para que a imprensa brasileira seja tão omissa quando se trata da transparência de si mesma. Omissão, aliás, que vem lá do século passado, como uma regra silenciada, mas praticada.
O passado não se pode apagar
Essa regra já tinha idade na imprensa brasileira dos anos 50, a que Barack Obama se referiu. No relato de Sylvia Colombo, Obama acusou a imprensa latino-americana de ainda “usar a linguagem” daqueles anos “para tratar da relação EUA-América Latina”. Em sua reclamação (ou seria apelo?): “É preciso acabar com a mentalidade de que o culpado por tudo o que vai mal na América Latina são os Estados Unidos.”
Não são? Ou não são mais? Ótimo. De qualquer modo, Obama se engana quanto à linguagem do jornalismo por aqui, nos anos 50 e em muitas dezenas de anos mais, sobre os EUA. O extremismo da Guerra Fria não permitia que a imprensa nem sequer tivesse, quanto mais usasse, uma linguagem criticante dos EUA. Na eventualidade de palavras que não fossem de inteiro apoio aos americanos, a imprensa estava apenas transcrevendo algum alto mandatário em momento de exceção. E transcrição literal, ou haveria problema.
A censura democrática, sem lei, mas com todos os meios de poder, não tinha limite. Uma ilustração basta. É a do diretor de Manchete, Justino Martins, que viaja à União Soviética, anos 60 ou 70, para registrar o mal conhecido cotidiano por lá. Publicada a primeira de três reportagens, a multinacional Rhodia (têxtil, química, indústria farmacêutica, plásticos, múltiplas atividades), maior anunciante do grupo Manchete, faz a Adolpho Bloch, por telefonema de seu presidente brasileiro, este aviso simples: “Se sair a segunda reportagem da URSS, a Rhodia retira todos os anúncios de tudo aí.”
Obama não sabe que a América Latina está aprendendo a falar sobre os EUA. Mas o passado não pode apagar-se todo. Nem os EUA se interessaram por fazê-lo.
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[Janio de Freitas é jornalista]