Leio na coluna do ombudsman da Folha de S.Paulo que o Painel FC atribuiu ao dirigente do São Paulo Carlos Eduardo Barros e Silva, o Leco, uma frase que não disse, pronunciada num lugar em que nunca esteve. Não é um episódio isolado, uma anomalia, mas exprime uma tendência do jornalismo contemporâneo, imagino, à revelia dos Manuais de Redação. O jornalismo de resultados entrega-se à sanha de conquistar leitores ou arrebatar audiência a qualquer custo. Se a notícia é “quente”, pouco importa a apuração do fato e muito menos avaliar suas circunstâncias. Ouvir o “outro lado”, nem pensar. Se, por descuido, isso ocorre, não passa de um ritual farsesco. Esse jornalismo de resultados e seu séquito de pretensos opositores na internet são agentes do novo totalitarismo, especialistas nas proezas da manipulação, da intimidação e da censura da opinião alheia.
No estágio atual da sociedade de massa, o controle social despótico dispensa a obviedade dos dólmãs, dos coturnos ou da cadeira do dragão. O totalitarismo do Terceiro Milênio não usa coturnos nem câmaras de gás. Usa a “informação” que não pensa em si mesma. O propósito da manipulação e da espetacularização da notícia é tornar os “pacientes” incapazes de compreender a natureza perversa da frenética guerra de fatos e versões “construídas” sob o acicate da concorrência para alcançar o “fundo do poço”.
Em 1947, a Comissão sobre a Liberdade de Imprensa nomeada pelo Congresso dos Estados Unidos advertia em seu relatório final: existe uma razão inversamente proporcional entre a vasta influência da imprensa na atualidade e os grupos sociais que podem utilizá-la para expressar suas opiniões. Enquanto a importância da imprensa para o povo aumentou enormemente com o seu desenvolvimento como meio de comunicação de massa, “diminuiu em grande escala a proporção de pessoas que podem expressar suas opiniões e ideias através da imprensa”.
Truculências nas “malhas do poder”
O relatório procurou apontar “o que a sociedade tem direito de exigir de sua imprensa”. Definiu duas regras essenciais para o legítimo exercício da liberdade de informação e de opinião: 1. “Todos os pontos de vista importantes e todos os interesses da sociedade devem estar representados nos organismos de comunicação de massa”; 2. “É necessário que a imprensa dê uma ideia dos grupos que constituem a sociedade. Dizer a verdade a respeito de qualquer grupo social – sem excluir suas debilidades e vícios – inclui também reconhecer os seus valores, suas aspirações, seu caráter humano.”
As recomendações exaradas no relatório da Comissão sobre a Liberdade de Imprensa refletem o espírito do tempo nos Estados Unidos e na Europa Ocidental: a aposta no aperfeiçoamento dos processos de controle democrático sobre o Estado e o poder privado. O trauma das duas guerras mundiais e da Grande Depressão saturou o ambiente intelectual dos anos 40 do século 20 da rejeição ao mercado descontrolado e ao totalitarismo.
O sociólogo Karl Mannheim, pensador representativo de sua época, escreveu em 1950 no livro Liberdade, Poder e Planejamento Democrático: “Não devemos restringir o nosso conceito de poder ao poder político. Trataremos do poder econômico e administrativo, assim como do poder de persuasão que se manifesta através da religião, da educação e dos meios de comunicação de massa, tais como a imprensa, o cinema e a radiodifusão.” Mannheim dizia temer menos os governos, que podemos controlar e substituir, e muito mais os poderes privados que exercem sua influência no “interior” das sociedades modernas. Não é preciso ter lido Michel Foucault para suspeitar de truculências que não dizem o seu nome, mas são impiedosamente exercidas nas “malhas do poder”, tecidas em silêncio no interior das sociedades.
Os desatinos do mundo da informação
Hannah Arendt abordou, nas Origens do Totalitarismo, as transformações sociais e políticas na era do capitalismo tardio e da sociedade de massa. A economia dos monopólios substituiu a empresa individual pela coletivização da propriedade privada ao mesmo tempo que promovia a “individualização do trabalho”, engendrada pelas novas modalidades tecnológicas e organizacionais da grande empresa. A operação impessoal das forças econômicas produziu, em simultâneo, o declínio do homem público e a ascensão do homem massa, cuja principal característica não é (somente) a brutalidade e a rudeza, mas o seu isolamento e sua falta de relações sociais normais.
Trata-se da abolição do sentimento de pertinência, da desconstrução dos laços familiares, afetivos e de companheirismo. “As massas surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada, cuja estrutura competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram controladas quando se pertencia a uma classe.” A escória, na visão de Arendt, não tem a ver com a situação econômica e educacional dos indivíduos, “pois até os indivíduos altamente cultos se sentem particularmente atraídos pelos movimentos da ralé”. O massacre capitalista das tradições liberais fomentou os desatinos que hoje contaminam o mundo da informação.
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[Luiz Gonzaga Belluzzo é economista e colunista da CartaCapital]