Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A delação, o prêmio e a notícia

Jornalismo fiteiro, na definição que lhe deu Alberto Dines, é aquele que faz uso de grampos para propagar denúncias. As fitas se transformaram em arquivos digitais em torno dos quais prospera um verdejante mercado de arapongas que compete com os especialistas em vazamentos editados da polícia federal.

As denúncias que vieram à tona vitimaram governos de diversas colorações partidárias. Os grampos do BNDES jogaram uma cortina de fumaça sobre as privatizações do governo tucano, os vídeos com maços de dinheiro no Distrito Federal derrubaram o mais importante governo que o DEM já elegera e o flagrante de Waldomiro Diniz negociando propina detonou o cargo de seu chefe José Dirceu e abriu a caixa de pandora do mensalão petista. Os grampos dão mais credibilidade às denúncias mas, na maioria das vezes, as reportagens deles resultantes deixam de fuçar os interesses de quem fornece as gravações.

O que vem à tona com a investigação dos malfeitos de Carlos Cachoeira nada mais é do que a rede clandestina de poder que o contraventor goiano, deixado à sombra desde que detonou Waldomiro Diniz, foi capaz de expandir com o apoio de empreiteiras, policiais, juízes, parlamentares, governadores e prepostos bem posicionados na máquina federal. Passaram-se sete anos desde que Cachoeira ganhou notoriedade. Ao longo desse tempo, a imprensa – com exceções como o jornal O Popular, de Goiânia – pouco se ocupou dos negócios do “empresário” no poder. No relatório em que pede a cassação do senador Demóstenes Torres (sem partido-GO), o senador Humberto Costa (PT-PE), desfia um conjunto de pautas desprezadas ao longo desse tempo. Ao levantar os discursos, a conduta na presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e os requerimentos de informação ao governo feitos pelo senador goiano ao longo de seus dois mandatos no Senado, Humberto Costa mostrou todas as digitais de seu colega de Casa na defesa do jogo do bicho e dos negócios escusos patrocinados por Cachoeira à sombra do poder.

Uma sede de vingança

Isso não diminui o jornalismo tupiniquim. Acontece com os melhores do mundo. Ao longo das últimas décadas, o caso Watergate foi reverenciado como o marco de um jornalismo que, sabendo extrair informações de uma fonte secreta cultuada como um herói no seu patriotismo anônimo, foi capaz de derrubar um presidente. No livro Leak: Why Mark Felt Became Deep Throat (“Vazamento: Por que Mark Felt virou Garganta Profunda”), lançado nos Estados Unidos este ano, o jornalista Max Hollande revela que a fonte dos jornalistas, um ex-agente do FBI, tinha como principal interesse, na verdade, tomar o lugar do número 1 da instituição. Passaram-se 40 anos até que alguém se tenha interessado em ir atrás das verdadeiras motivações do “Garganta Profunda”, como Mark Felt era nominado pelos jornalistas a quem municiou. O jornalismo tupiniquim até que foi mais rápido. Talvez por que as ambições da dupla Cachoeira-Demóstenes ultrapassem muito as de Felt.

Mas, assim como as motivações do Garganta Profunda não são suficientes para reabilitar Nixon, os interesses que moveram Cachoeira sete anos atrás não invalidam a importância de se levar a cabo, com a severidade que o momento exige, o julgamento do mensalão. Lá e cá, é de omissão, portanto, que se trata. Jornalista pode, sim, ter bandido como fonte. Até a justiça inventou um jeito para isso com a criação da delação premiada. O jornalista aceita informação de bandido na expectativa de pegar um outro maior. A questão é até onde se pode omitir os malfeitos da fonte. Tudo poderia ser resumido a uma questão de custo e benefício, não fosse o interesse público.

O jornalismo melhoraria se se dispusesse a debater essa omissão. Se a militância é pelo interesse público, não há alternativa à transparência. O que o jornalista sabe e pode sustentar deve ser publicado. Não deve ser objeto de depoimento em CPI ou Conselho de Ética nem contra nem a favor de fonte. A tentativa de alguns parlamentares petistas em tratar omissão jornalística como crime revela uma sede de vingança fora de tempo e de lugar, imprópria na forma e no conteúdo.

A ética do bom gandula

Foi-se o tempo em que a grande imprensa podia ser considerada a culpada de todos os males. A informação nunca circulou tão livremente. A CPI do Cachoeira é resultado desta liberdade. Qualquer um é livre para exorcizar na internet suas pendengas com antigos patrões, mas não deve reivindicar-lhes legitimidade para o debate público.

O PT é um partido vitorioso. É o único da história a se eleger pelo voto universal direto para três mandatos consecutivos na Presidência da República. Teve oportunidade de fazer sua depuração interna depois do mensalão e não foi adiante. Tivesse ido, seria capaz de aguardar com mais serenidade o julgamento de alguns dos seus pelo Supremo. A agressividade petista também pode revelar um mal-estar com o norte deste governo. A popularidade recorde da presidente Dilma Rousseff deriva, em parte, de sua atitude frente às denúncias trazidas pela imprensa que hoje seu partido critica.

Como a livre informação nunca é sócia de poder algum, ainda está para ser contada a história de como o caso Cachoeira mobilizou tantos poderosos da era petista – desde o principal estrategista de defesa no mensalão, que hoje atua como advogado de Carlos Cachoeira, até o ex-presidente do Banco Central, que assumiu a negociação da compra da Delta por um dos grupos mais beneficiados pelo BNDES.

Não cai mais ministro depois que prenderam Cachoeira. Enquanto estava fora das grades, ganhou manchetes. Agora chegou, de fato, a hora da delação premiada. A questão agora é descobrir quem, além de Cachoeira, ganhará com isso. E que à imprensa, recomenda um jornalista com quase 60 anos de militância, reste a ética do bom gandula: não ajeitar a bola só para o jogador do time de sua preferência cobrar.

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[Maria Cristina Fernandes é editora de Política do Valor Econômico]