Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mino

Não conheço, pessoalmente, Mino Carta.

Enxergo nele, é claro, um grande jornalista – um dos maiores da história do jornalismo no país. A obra de Mino fala por si própria. Mino escreve bem, edita bem, comanda bem. É um jornalista completo. Foi um dos dois maiores diretores de redação da Veja. O outro foi seu sucessor, José Roberto Guzzo.

Não obstante tudo isso, tenho restrições a ele, à distância.

Entendo que Mino se deixou escravizar mentalmente pela sua saída da Veja. Ele fala de Roberto Civita com um ódio inacreditavelmente fresco, dado que são fatos de quarenta anos atrás. Vistas as coisas com objetividade, Mino deixou a Veja simplesmente porque se desentendeu com os donos, e isso é de uma banalidade avassaladora no mundo executivo. Quando patrão e empregado se desentendem, o empregado é demitido. Da mesma forma, todas as vezes em que Mino e um subordinado brigaram, quem saiu foi o subordinado.

Na raiz da discórdia, na minha interpretação, estava o poder que o contrato negociado por Mino lhe dera como diretor de redação. Era um contrato dos sonhos para qualquer editor: os donos só opinavam depois que a revista estava pronta. Mas para os proprietários esse tipo de coisa é um pesadelo: tira uma coisa essencial no negócio da mídia – o poder, a influência. A mídia, como empreendimento, dá muito mais isso – prestígio, um senso de importância – do que propriamente dinheiro. Logo, não era um acordo destinado a durar muito. Nem sei como foi fechado, para falar a verdade. Considere que você é dono de um brinquedo, mas não pode brincar com ele. É mais ou menos isso.

Quixote idealista

Mino jamais conseguiu digerir o episódio. Nas inúmeras vezes em que o vi falar ou escrever sobre a saída da Veja, o tom era o mesmo: um ressentimento intransponível e estridente. Você tinha a sensação de que ele deixara a revista na véspera. Como é comum, o rancor parece ter feito muito mais mal a Mino do que a Roberto Civita.

A raiva imortal tem se mostrado nas últimas semanas. Mino, erradamente, comparou Roberto Civita a Rupert Murdoch. Se existiu uma versão nacional de Murdoch foi, claramente, Roberto Marinho com seu vale-tudo empresarial e administrativo e sua capacidade infinita de extrair vantagens de suas relações com o poder. (Embora haja uma diferença grande: Murdoch é jornalista. Roberto Marinho só foi jornalista no título que se auto-outorgou.)

De Londres, não acompanho de perto a CartaCapital. Mas minha lembrança é que a revista acabara se inclinando demasiadamente para o governo. Foi a maneira, imagino, de fazê-la sobreviver como negócio: os anúncios de estatais ajudam a pagar as contas. Mas o preço pode ter sido muito alto, em termos de independência editorial. Nos últimos anos, é possível que Mino tenha mais falado das virtudes editoriais do apartidarismo do que efetivamente praticado. (Admito contudo a hipótese de que o antipetismo militante da mídia em geral possa ter empurrado Mino mais para o lado do governo do que ele talvez desejasse.)

Mas mesmo assim. Com todas as restrições que possam ser feitas a Mino Carta, é um absurdo, um disparate, um ultraje à inteligência a tentativa de assassinato de caráter que os suspeitos de sempre vêm tentando fazer contra ele com base em textos do tempo em que Mino dirigiu a Veja.

Quem não muda em quarenta anos? Só os mentecaptos.

De resto, eram dias duros. Meu pai, editorialista da Folha de S.Paulo, certa vez recebeu uma ordem de Frias para escrever um editorial no qual dissesse que não havia presos políticos, apenas presos comuns. Isso num momento em que havia uma greve de fome dos presos políticos. Meu pai recusou escrever – e foi encostado. Um outro jornalista – Claudio Abramo, um gigante da imprensa – escreveu o texto pedido por Frias. Isso diminui Claudio? Não. Ele cumpria uma ordem, pragmaticamente. Meu pai é que era uma criatura verdadeiramente incomum, um quixote idealista que colocava seus princípios acima dos interesses pessoais.

País dividido

Em meu pequeno mundo, cansei de louvar Margaret Thatcher nos anos em que dirigi a Exame. Achava que ela era uma solução quando, como o tempo mostrou, era um problema – uma conservadora que não cuidou dos interesses senão de sua própria classe, e cujo legado pode ser visto na presente crise econômica mundial.

Fernando Henrique Cardoso foi sábio quando disse: “Esqueçam o que escrevi”. Stálin usou textos antigos de Trotsky quando quis desqualificá-lo como sucessor de Lênin. É o que estão fazendo com Mino Carta. Estranhamente, Mino Carta decidiu responder a ataques sem sentido – e no final opôs apenas tergiversação à má fé dos arqueologistas caluniadores. (Destes o mais venenoso, por ser o mais equipado, é Demétrio Magnoli.)

Cada vez que, de Londres, vejo embates dessa natureza, fico mais e mais preocupado com a possibilidade de que o Brasil se transforme numa Venezuela, polarizado, dividido em duas facções que se odeiam e buscam a aniquilação uma da outra – num confronto insensato ao fim do qual é possível que existam apenas perdedores.

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[Paulo Nogueira é jornalista]