Saturday, 16 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O jornalismo de mãos limpas

A edição de quarta-feira (6/6) do jornal O Globo enfatizou, ao lado da foto de capa e em artiguete editorial, a morosidade da Defesa Civil no atendimento ao chamado de uma moradora que alertava para o risco iminente de desabamento de um andaime no Leblon. O prazo que lhe deram teria sido de 12 horas. No entanto, a própria matéria dizia que a Defesa Civil havia isolado o local, embora sem mencionar o horário, antes que o andaime viesse abaixo.

No dia seguinte, sem chamada de capa, o jornal publicava nota da Defesa Civil desmentindo a lentidão no atendimento e informando que o socorro foi prestado 17 minutos depois do alerta. Doze horas seria o prazo para o encerramento da burocracia relativa a cada chamado.

No mesmo jornal, na mesma edição, a coluna de Ancelmo Gois publicou protesto do frei David, conhecido por sua luta em defesa dos negros e marginalizados, contra a ausência de candidatos a médico em concurso na Baixada Fluminense (mais de 1.200 vagas, pouco mais de 600 inscritos, menos de um candidato por vaga), o que representaria mais um episódio de descaso com a saúde dos pobres.

No dia seguinte a coluna registrava uma avalanche de reclamações de médicos contra a nota e publicava a informação que havia faltado: o salário irrisório de R$ 1.630 por 24 horas semanais de trabalho. 

São apenas dois exemplos recentes, e muito evidentes, dessa prática lamentavelmente tão comum de publicar informações sem a devida confirmação.

Velocidade x precisão

É certo que o trabalho realizado em “tempo real”, equivocadamente visto como uma necessidade imposta pela tecnologia digital – que favorece a velocidade na transmissão de informações, mas absolutamente não obriga ao automatismo –, acaba sendo uma fábrica de “barrigas” e mal-entendidos, quando não uma desculpa às vezes esfarrapada para tentativas de desqualificar pessoas e instituições, apesar do constrangimento dos desmentidos. Mas, a rigor, a velocidade sempre foi um “valor” para o jornalismo, desde que esta atividade se estabeleceu como indústria, de acordo com os novos tempos anunciados pela consolidação do capitalismo, a meados do século 19. Um valor contraditório à promessa de precisão que também sempre caracterizou esse trabalho comprometido com a apuração e transmissão de informações confiáveis a um público cada vez mais amplo. E que já na época produzia barrigas constrangedoras, como a do famoso despacho da Associated Press dando conta da morte do escritor Mark Twain, que reagiu com a sua peculiar ironia: “A notícia da minha morte foi muito exagerada”.

Logo, não se pode atribuir aos novos tempos esses escorregões cada vez mais frequentes, essa atitude de acolher como verdade o que é apenas verossímil e desobrigar-se da necessária checagem.

Corta e cola

Ainda nos anos 1980, num debate sobre segurança pública no Rio de Janeiro, o então novo secretário, o advogado Hélio Saboya, se disse surpreso com a atitude dos repórteres: “Eu anuncio uma cifra qualquer, por exemplo, que a taxa de homicídios baixou 70% de um mês a outro, e eles simplesmente anotam, ninguém pergunta de onde eu tirei esse número”. Muito mais recentemente, um ex-assessor de imprensa do Comitê Olímpico Brasileiro, em conversa informal, recordava o que testemunhou na época do Pan-Americano no Rio, em 2007: “Qualquer coisa que a gente divulgasse era publicado. Não divulgávamos nada falso, mas ninguém, com raríssimas exceções, queria saber de onde tinha saído a informação”.

Se quisessem divulgar algo falso, portanto, não teriam dificuldade. E o próprio papel proeminente das assessorias de imprensa como mediadoras no processo de produção da notícia, algo impensável até os anos 1980, favorece essa acomodação da reportagem, que frequentemente se limita a cortar e colar releases.

Não é preciso dizer que essa situação cria um campo fértil para a disseminação de todo tipo de boatos e balões de ensaio e subverte o que seria um dos princípios fundamentais do jornalismo: a credibilidade.

Universidade x mercado

Cria também, além de tudo, um conflito entre o ensino e a prática do jornalismo. Os valores clássicos apresentados e discutidos nas escolas – pelo menos, nas boas escolas –sobre a necessidade de respeito à verdade factual – portanto, à objetividade –, que implica a apuração rigorosa e a desconfiança em relação às informações como ponto de partida desse processo, parece que não valem nada diante da chamada “realidade do mercado”. Não por acaso, alunos candidatos a estágio em grandes empresas volta e meia ouvem de seus selecionadores frases como esta, que desqualificam o aprendizado acadêmico: “Vocês esqueçam o que aprenderam na universidade, porque aqui no mercado a história é outra”.

Lamentavelmente, é mesmo. E em vários sentidos, inclusive, e sobretudo, éticos.

Por isso, certa vez, achei adequado chamar de “jornalismo de mãos limpas” essa prática de publicar as coisas irrefletidamente: alguém faz uma denúncia, o jornal publica. O denunciado protesta, o jornal publica. E lava as mãos. Apurar pra quê?

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[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]