Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O julgamento do século ou as vísceras da imprensa

“O julgamento do século”. Assim, a revista IstoÉ (20/6) qualificou o julgamento dos envolvidos do chamado mensalão, com destaque para o ex-ministro José Dirceu, que acontecerá em agosto próximo. A frase aparece num pequeno selo na abertura da reportagem de capa, mas é nos detalhes, como diria Freud, que um outro conteúdo mostra suas pontas. Não deixa de ser um discurso de efeito, sendo que o século há pouco deixou de engatinhar. Ao mesmo tempo, mostra a função da linguagem jornalística, que é a de negar seus próprios princípios. E isto não é novidade. No fim, é a própria função da linguagem, a de se alimentar das patologias de um círculo vicioso.

Ao mesmo tempo é um anúncio de como os media (pelo menos aqueles com um mesmo alinhamento ideológico) estão se preparando para cobrir esse acontecimento, já que ele, no espetáculo, é anunciado como “o julgamento do século”. E os textos clássicos que ensinam como construir uma comunicação para as massas nos ajudam a entender e antecipar alguns passos da grande imprensa incomodada com os cursos da política nacional. Talvez o mais emblemático pela perversidade de seu autor seja o capítulo “A propaganda de guerra”, do livro Minha Luta, de Adolf Hitler, para quem a propaganda deve se restringir a poucos pontos e “esses deverão ser valorizados como estribilhos, até que o último indivíduo consiga saber exatamente o que representa esse estribilho”. Mais ainda, ela deve “compreender o mundo maniqueísta e representar seus sentimentos”.

Na lógica maniqueísta, o mensalão tem uma personagem que corporifica todo o mal. Por inúmeras vezes, Dirceu já foi estampado nos mais variados periódicos fazendo careta, mostrando a língua… Quanto à simplificação, ela já se daria ao trabalhar esta suposta prática de corrupção como originária unicamente deste episódio.

A análise pelo andar de baixo

E não faltam exemplos de como os media criam imagens no grande espetáculo das relações de forças travadas, mas mascaradas no gênero jornalístico. Como esquecer Aquela capa da Veja, de 23/9/2002, com a manchete “O que querem os radicais do PT”? Na capa, uma ilustração ocupando quase todo espaço, faz surgir um monstro diabólico com três cabeças: Marx, Trotsky e Lênin. Como se não bastasse, o Cérbero, esse cão da mitologia grega que guardava a entrada do reino subterrâneo dos mortos, estava preso a uma corda esticada. Bastava abrir a revista para ver que era Lula que a segurava. Talvez o periódico quisesse dizer: do mundo dos mortos, Lula retirou a velha esquerda para aterrorizar o Brasil. Tudo isso, na época, às portas, das eleições.

Lembro-me da afirmativa de Sigmund Freud ao filósofo Ludwig Binswanger: “Sempre permaneci no andar térreo ou no subsolo do edifício”. É certo que Freud referia-se à sua descoberta do inconsciente frente ao lugar ocupado pelo filósofo. Podemos usar essa mesma estrutura de pensamento para o nosso caso. Basta fazer uma dobra na metáfora construída pela Veja e identificar que o recrudescimento do imaginário anticomunista revela que a racionalidade do discurso jornalístico é pueril, assim como as lembranças narradas do sonhador. Assim, analisar os media pelo andar de baixo, pelo subsolo do discurso talvez seja a única forma de se escapar da realidade fantasiosa do próprio discurso.

Realidade discursiva

Poderíamos ainda citar o filósofo Gilles Deleuze, que construiu junto a Félix Guattari a grande crítica à psicanálise, para ilustrar melhor essa tese de que a função do discurso é sua própria negação (ou seja, contra as próprias leis que regulam a condução e ao mesmo tempo o gênero discursivo): “Os jornais, as notícias, procedem por redundância, pelo fato de nos dizerem o que é ‘necessário’ pensar, reter, esperar etc.”

Em Freud, os sonhos descolam e condensam conteúdos recalcados. As imagens oníricas nos sonhos mascaram seu significado, condição para que o conteúdo possa passar pela barreira da repressão, ou seja, sair do inconsciente e emergir na consciência como outra aparência. Em Deleuze e Guattari, os media controlam os sentidos, ficando seus interesses velados também no andar de baixo, com a diferença que neste caso o sujeito do discurso (que pode ser a empresa de comunicação) tem consciência do que ela deixa oculto. Temos ai pistas de como funciona a linguagem e de como podemos analisá-la.

Nada mais gritante do que o caso envolvendo o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Qual é o núcleo que transformaria um suposto episódio em fato jornalístico? Não há. Mas não faltam motivos para o destaque. E aí, Deleuze é certeiro novamente: “O enunciado realiza um ato e que o ato se realiza no enunciado.” Por um tempo, os media deslocaram seu foco do caso Cachoeira. E é bem assim, o discurso funciona como um foco de luz, levando as pessoas a verem o que, sem ele, não viriam. O que nos leva a crer também que a realidade não existiria sem o próprio discurso. Por isso, o discurso sempre opera na negatividade. Ele sempre acaba negando uma existência além dele, ao passo que sua existência se deve à afirmação de uma suposta existência exterior.

Entre cão dos infernos, intrigas entre ministro do Supremo e ex-presidente, uma coisa é certa, “o julgamento do século” acontecerá, já que os media estão montando o cenário e investindo alto para que o espetáculo produza todo tipo de sentimento, mas, sobretudo, o de cólera.

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[José Isaías Veneraé jornalista, com formação em psicanálise, e professor de Comunicação]