Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma linha editorial curiosa e sinuosa

Um jornal exprime sua linha através dos seus editoriais. Está aí um conceito básico de imprensa que talvez até conste no Manual de Redação da Folha de S.Paulo. Pois seguindo este princípio é deveras curiosa e sinuosa a linha do mesmo jornal. Tome-se como exemplo os editoriais de sábado, 18 de fevereiro, deste ano: “Vitória da Ficha Limpa” e “Rafael Correa, ditador”. Encontram-se neles dois modelos da filosofia neoliberal embutida do jornal que não raro troca os pés pelas mãos ao defender o que considera dogmas sagrados da democracia liberal ocidental cristã.

O primeiro, “Vitória da Ficha Limpa”, a pretexto de louvar uma decisão da Justiça contra políticos corruptos termina por tachá-la como “laivo paternalista”. O segundo condena, já de cara, um presidente por uma decisão judicial contra diretores de jornal, sem atentar que a condenação de jornalistas venais acontece mesmo na Inglaterra, como a própria edição do jornal noticia num pé de página interno da mesma edição. O que não dá para esconder é o fato do jornal partir para o pau no presidente Rafael Correa, do Equador, em nome da liberdade de imprensa; assim como a defesa compungida da Lei da Ficha Limpa escamotear, no fundo, a dor-de-cotovelo da Folha pelos políticos que apoia.

Ao leitor resta cair na argumentação operística e suntuosa, que logo ao lado é ilustrada pelos articulistas mais honoráveis do meio, como Hélio Schwartsman e Fernando Rodrigues, que defenderam, na mesma edição, o controle programado da natalidade e o aborto. Já na edição seguinte, a sanha pontificadora e doutrinante dos editoriais FSP é da ordem de investir em teses sociológicas, ainda que não cientificistas shwartsmanianas.

O que o leitor deve pensar

O editorial “Menos desiguais”, da segunda-feira de carnaval, aconteceu acompanhado de gráfico imitando tese de doutorado da Unicamp. Depois do título, que poderia ensejar uma apreciação positiva da realidade nacional, segue o subtítulo ou “lead-cabeça”: “Brasil é exemplo singular de expansão da classe média da última década; escolaridade pesa mais que Bolsa Família e aumento do salário mínimo”. Deu para entender ? É difícil, mas sustenta a crítica de que há menos pobreza no país devido à escolarização da classe baixa, e não por causa dos programas assistencialistas ou de “transferência” (sic) do governo. Já no termo “transferência” está jogado o petardo. Transferência? Sim, transferência de renda: dos mais ricos para os mais pobres através do pagamento de salário mínimo mesmo a quem não trabalha.

A tese geral é que os pobres no Brasil vêm entrando na classe média, desde os governos FHC-PSDB, por causa dos aumentos salariais e da aquisição de maior escolaridade. O Bolsa Família pouco tem a ver com isto. Fosse tese ainda ia, mas na verdade é algo já colocado como fato desde o primeiro parágrafo. O que mais denotam, porém, artigos tão eruditos: são jornalistas e redatores tarimbados querendo agradar os patrões, mesmo porque são mínimos os leitores com paciência para se envolver em um aranzel que nem o Delfim entende. Hélio Schwartsman indubitavelmente é um deles. Tanto que foi capaz de, junto com dois colegas, fundar a “Igreja Heliocêntrica do Sagrado Evangélico”, como confessa em “Contraste chocante” apenas para provar que igrejas enfrentam menos burocracia e pagam menos impostos no Brasil do que nossas penalizadas empresas privadas. Não sei e espero que seja brincadeira. Há vários anos entrei na Folha de S.Paulo pelo elevador e vi dois rapazes rindo do editorial que iriam escrever e escreveram. Millôr Fernandes disse há muito tempo considerar incrível os editoriais da nossa grande imprensa serem tão bem escritos sem dizerem absolutamente nada. No caso da Folha, eles querem dizer tudo, inclusive o que o leitor deve pensar.

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[Zulcy Borges de Souza é jornalista, Itajubá, MG]