A matéria-prima é a mesma, mas o senso comum costuma diferenciar as palavras de um texto jornalístico das do texto literário. Um seria direto, sem floreios, simplesmente informativo. O outro ofereceria caminhos diversos, poderia embaralhar a narrativa e transformar a ficção em realidade. Mas aí alguém escreveu que Frank Sinatra estava resfriado, outro deu o título de “Pennando” a uma reportagem sobre Afonso Penna, e um terceiro ofereceu relatos da vida como ela é. Foram provas de que jornalismo e literatura têm laços próximos.
Durante décadas, dizia-se que trabalhar num jornal era um estágio para dois tipos de aspiração: a carreira literária ou a vida política. Na primeira categoria, grandes nomes tiveram passagens importantes pelos jornais brasileiros.
José de Alencar, Machado de Assis e Olavo Bilac trabalharam em redações de jornal. O clássico “Os sertões”, de Euclides da Cunha, nasceu de reportagens que ele fez para “O Estado de S. Paulo” no fim do século XIX. Oswald de Andrade mesclou ficção e reportagem em “Pennando”, texto que escreveu para o paulista “Jornal do Comércio”, em 1909, depois de acompanhar uma viagem do presidente Afonso Penna. Já João do Rio costuma ser lembrado como o primeiro repórter investigativo do Brasil, quando trabalhava no finado “Gazeta de Notícias”, do Rio.
– Meu primeiro emprego foi no antigo “Jornal da Bahia” e, desde então, estou sempre ligado, como empregado ou colaborador, a redações – diz o escritor João Ubaldo Ribeiro, hoje colunista do Globo. – O jornalismo me deu os macetes e recursos redacionais a que sua prática leva, bem como o senso de disciplina para não “furar a pauta”, qualquer que seja ela, e escrever mesmo quando não se está disposto. E, entre os escritores brasileiros, grande número deles, ou a maior parte, é e tem sido de jornalistas. Pessoalmente tenho orgulho disso.
Além de Ubaldo, nomes importantes da literatura ainda colaboram ou tiveram passagens pelo Globo. Nelson Rodrigues, que nos anos 1950 criou a famosa série de crônicas “A vida como ela é” no antigo diário Última Hora, teve um de seus primeiros empregos no Globo, inicialmente traduzindo os diálogos de histórias em quadrinhos e depois como repórter e editor. Otto Lara Resende e Antonio Callado colaboraram com o jornal, enquanto Rubem Braga foi seu correspondente em Paris. Thiago de Mello teve uma coluna nos anos 1950, e Elsie Lessa escreveu para O Globopor quase meio século.
Hoje, ainda escrevem no jornal autores de ponta da literatura brasileira, como Luis Fernando Verissimo e Zuenir Ventura.
– A literatura já se inspirou no Globo. Mais precisamente, Paulo Francis em seu romance “Cabeça de papel” – lembra Cristiane Costa, professora de Jornalismo da UFRJ e autora de “Pena de aluguel”, obra em que analisa as relações entre imprensa e literatura. – No livro, o Francis conta uma história, atribuída a Roberto Marinho no Globo. Durante a ditadura, ao ser repreendido por um general que reclamava que 19 dos 20 copidesques tinham ficha no Dops, ele teria dito que, se fosse expulsar todo jornalista de esquerda, não teria mão de obra para fazer o jornal no dia seguinte .
Nos anos 1960, a relação entre literatura e jornalismo se estreitou ainda mais, a partir de uma escola surgida nos EUA e que ganhou o nome de Novo Jornalismo. Lá, profissionais como Gay Talese (autor da célebre reportagem “Frank Sinatra está resfriado”), Truman Capote, Tom Wolfe e Norman Mailer deram novo significado ao texto jornalístico ao incorporar elementos da literatura. O movimento, porém, perdeu um pouco da força a partir dos anos 1980, com o surgimento de jornais que valorizavam notícias reduzidas e diretas.
– Os jornais foram diminuindo suas matérias, na crença de que os leitores querem informação mais rápida, e o culto ao bom texto foi ficando em segundo plano. Acho, no entanto, que o futuro joga a favor dos jornais. Já que todos têm a mesma notícia, vencerão os que a apresentarem num texto mais bem acabado, inteligente e original – afirma o colunista do Globo Joaquim Ferreira dos Santos.
Em nome da imortalidade jornalística
Em alguns casos, a efemeridade de uma notícia de jornal casa perfeitamente com a imortalidade de seu autor. Hoje, O Globo tem em sua equipe dois jornalistas membros da Academia Brasileira de Letras (ABL), além de outros imortais que colaboram regularmente com o jornal.
Colunista de política, Merval Pereira ocupa a cadeira 31 da ABL desde setembro de 2011. Já Luiz Paulo Horta acumula as funções de editorialista e crítico de música clássica no Globo com a de acadêmico desde novembro de 2008, na cadeira 23.
– Jornalistas são a categoria profissional mais bem representada em toda a história da Academia Brasileira de Letras. Acho que isso é bom para os dois lados: a Academia fica mais leve, e os jornalistas são incentivados a respeitar a língua em que escrevem – avalia Horta.
Também escrevem na página de Opinião do Globo e batem ponto no chá de quinta-feira da ABL nomes como João Ubaldo Ribeiro (cadeira 34) e Marco Lucchesi (cadeira 15).
Além desses, outros acadêmicos do presente e do passado já passaram pelo jornal. Paulo Coelho, atual ocupante da cadeira 21, foi repórter nos anos 1970. O imortal Otto Lara Resende (1922-1992) esteve no Globo nos anos 1950, onde, aliás, ficou amigo de Nelson Rodrigues – a partir dessa amizade, Nelson batizou uma de suas mais conhecidas peças de “Bonitinha mas ordinária ou Otto Lara Resende”. Também o jornalista Roberto Marinho (1904-2003) ocupou a cadeira 39 da ABL, sucedendo exatamente a Lara Resende.
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[André Miranda, de O Globo]