Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Das telas para o papel

Na primeira cena em que o personagem de Harrison Ford aparece em Blade Runner (1982), ele está lendo um jornal. Ford interpreta um tipo de androide, o ano é 2019, e a manchete trata de agricultura na lua. Na visão futurista do diretor Ridley Scott para a história do escritor Philip K. Dick, há ainda carros voadores, colônias terrestres em outros planetas e armas de raio laser. Mas um detalhe não muda: o bom e velho jornal é o mesmo que se conhece há séculos, feito de papel.

No cinema, jornais e jornalistas sempre foram fonte de inspiração, quase sempre numa associação entre conhecimento e poder, às vezes até com algum humor. O personagem Carlitos, de Charles Chaplin, estreou no cinema exatamente num filme sobre jornalismo. O curta-metragem mudo, de 1914, tinha 13 minutos e se chamava Carlitos repórter: nele, Carlitos é um trambiqueiro que arruma emprego num jornal, rouba as fotos de um acidente feitas por um colega fotógrafo e apresenta a notícia como sua.

– O roteiro cinematográfico clássico se estrutura como o drama humano vivido no cotidiano do jornalismo. O Carlos Lacerda dizia que o jornalismo era drama, palavra e imagem. E são esses fundamentalmente os elementos que formam a dramaturgia no cinema – afirma Miguel Pereira, crítico de cinema do Globo por quase 18 anos, nas décadas de 1960 e 1970, e hoje professor de Jornalismo da PUC-Rio. – Há vários filmes sensacionais sobre jornalismo, como Cidadão Kane e A Montanha dos Sete Abutres. A questão é que cinema e jornalismo são duas formas de expressão de vida muito próximas.

Dirigido por Orson Welles, Cidadão Kane (1941) é um dos maiores clássicos do cinema, sobre a vida de um magnata do jornalismo. Já A Motanha dos Sete Abutres (1951), de Billy Wilder, tratava dos riscos da manipulação da notícia por parte da imprensa, ao retratar um ambicioso jornalista vivido por Kirk Douglas. Em ambos os casos, ficavam claras a importância dos jornais para a sociedade e a necessidade de uma imprensa responsável.

Dali em diante, foram muitas as situações em que o jornal foi primordial para a construção das narrativas de um filme. Em Todos os homens do presidente (1976), de Alan J. Pakula, os personagens de Dustin Hoffman e Robert Redford eram jornalistas do diário americano Washington Post, cuja investigação de uma conspiração levaria à renúncia do presidente Richard Nixon. Detalhe: o filme foi baseado em fatos reais, da atuação da dupla de jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein no início dos anos 70.

Há, também, histórias mais leves, do dia a dia da produção jornalística. O suposto glamour da cobertura cultural foi explorado em Quase famosos (2000), longa-metragem em que um jovem aspirante foi escalado para acompanhar a turnê de uma banda de rock para uma reportagem para a revista Rolling Stone. Não por acaso, “Quase famosos” foi escrito e dirigido por Cameron Crowe, ele próprio um ex-repórter que, aos 18 anos, fez seu primeiro grande trabalho na imprensa ao seguir os passos da The Allman Brothers Band.

Outro aspecto curioso sobre a presença dos jornais na tela é acompanhar sua evolução. Se em Blade Runner, o jornal imaginado para 2019 é o de papel, o de Minority report (2002), filme de Steven Spielberg também baseado numa história de Philip K. Dick, é eletrônico. Passada em 2054, sua história acompanha um mundo onde os crimes são previstos antes de acontecerem. Lá, os personagens leem jornais em telas transparentes, numa experiência semelhante a que se tem hoje com os tablets.

Acontece que, mesmo no cinema, onde o limite da criatividade é a imaginação, jornais e jornalistas continuam sendo essenciais.

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[André Miranda, de O Globo]